Assédio e a estrutura patriarcal

A estrutura patriarcal perdura na humanidade desde o início dos tempos. A subjugação feminina se transformou em um tema a ser debatido e transformado a pouquíssimos anos, desde, aproximadamente, o final do século XIX. As mulheres buscaram suas próprias pautas desde então, criando o movimento feminista e ganhando destaque mundialmente por buscarem alterar essas estruturas de poder masculino. Apesar dessa certa positividade, ainda há uma gigantesca problemática pela frente. Histórias de casos sobre homens abusando de mulheres ganham sempre os noticiários mundo afora. Um deles serviu de inspiração para a minissérie Assédio, do canal de streaming Globoplay. Poderia haver um debate sobre uma exposição desnecessária ao sofrimento feminino, todavia o objetivo aqui é trazer luz aos acontecimentos. É mostrar para nunca se esquecer. É mostrar para perceber como o patriarcalismo ainda persiste.

A trama, inspirada no livro A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih, conta a trajetória de diversas mulheres abusadas pelo respeitado médico Roger Sadala (Antonio Calloni). No meio de suas vidas, ora corrompidas, ora destruídas, pelos abusos, a jornalista Mira (Elisa Volpatto) descobre o caso. Ela, entrevistando essas mulheres, tentará fazer justiça para a história de cada uma, além de punir Roger.

O maior ponto a ser falado aqui é a construção narrativa feita pela diretora Amora Mautner. Com um texto já deveras interessante de Maria Camargo e Pedro de Barros, Mautner transforma as imagens em uma encenação dessa tragédia provocada pelo médico. Um dos grandes acertos são os seus flashfowards, trazendo os depoimentos das vítimas e também do próprio Sadala. Ela consegue trabalhar essa ficcionalidade em paralelo com o real, ao fazer essa demonstração dos depoimentos, quase trazendo uma estética documental aos episódios. Além disso, sua encenação se propõe a consolidar a figura desse personagem vilanesco, sob atitudes sempre complicadas. Desde uma fala mais agressiva com a esposa até os planos detalhes em seu olhar. Tudo isso reverbera de forma a elucidar esse machismo encarnado.

A composição acontece, do mesmo modo, na figura do médico. Muito mais do que apenas na atuação de Calloni, esse trabalho é feito sob forma de que ele seja uma espécie de protagonista, ao fim. Cada episódio busca uma reação perante seus próprios atos, sempre expressos sob uma certa naturalidade, um machismo onipresente. As conversas com seus advogados e amigos, inclusive, reforçam essa busca da obra de falar sobre como os homens são responsáveis por essas ações. Não existe uma culpabilização da vítima, como tanto se é visto no mundo afora. Aqui, a culpa recai sempre, ao olhar da direção, para ele.

Há uma certa cadência para mostrar as agressões sexuais propriamente. Essa cadência também se relaciona ao próprio Roger, na qual, inicialmente, age como alguém bom perante as pacientes, mas se transforma aos poucos. O uso da luz nas consultas traz um clima mais ameno, com cores mais claras. Porém, quando ele está sozinho com cada uma delas, sua transformação é ambientada muito bem pela fotografia mais pastel, fria. O uso menor – nos primeiros episódios – de demonstrar diretamente a agressão (com planos meio turvos, sem foco, além do uso de um plano subjetivo), transitam com as pesadas sequências mais diretas (com planos mais abertos, um certo distanciamento).

Os episódios ainda possuem um olhar bastante pertinente e interessante para a questão da estrutura machista da sociedade. Ao abordar o assédio de uma funcionária, seu marido diz preferir fingir que nada aconteceu. Assim como o advogado de um outro casal, que também reforça esse argumento. A obra mostra essas diversas formas de poder e controle detida pelos homens ao longo do tempo. É uma maneira também de combater a ideia das denúncias, quase nunca ouvidas. Por isso a figura de uma personagem feminina jornalista, é um alento a ouvi-las.

Assédio possui um importante recado de memória desse patriarcado presente nas sociedades humanas, aqui, especialmente, no caso brasileiro. Apesar de haver uma diluição em alguns instantes nas subtramas de certas personagens, o foco narrativo no abusador Roger transforma a série em uma exemplificado de tudo isso. Os episódios trazem o tempo todo situações particulares, afim de serem reconhecidas por mulheres e entendidas por homens. Existe quase um trabalho social presente aqui. Se pensarmos que o audiovisual é um trabalho de produção de coisas temporais, poderemos se deparar com essa produção sob outros olhos. Olhos esses bastante reais e presentes a todo o redor.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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