Coluna da Cibele | Memória e sonho se misturam em “O vendedor de passados”

“A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. […] Algumas estão já tão longes, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez tenhamos sonhado.” (AGUALUSA, 2018, p. 157)

 

Por vezes, pensamos que o nosso passado é imutável. Frases como “o que aconteceu, aconteceu” ou “não adianta chorar pelo leite derramado” nos fazem crer que as histórias que vivemos não podem ser alteradas. Pelo contrário, já estão eternizadas na nossa linha do tempo. E se isso for uma mentira? Será possível modificar nossas memórias? E se um novo passado estiver ao alcance daqueles que podem pagar por ele?

O Vendedor de Passados, de autoria do angolano José Eduardo Agualusa, explora a natureza das memórias, dos sonhos e da própria verdade em si. Com uma narrativa que mescla passado e presente de forma indissociável, Agualusa retrata uma Angola pós-independência habitada por personagens que flertam entre o ficcional e o real (real com pitadas de excentricidade, é claro).

A emergente burguesia angolana busca desesperadamente por um passado mais adequado a sua nova condição social. Ostentar antepassados ilustres é tudo o que os novos empresários, políticos e generais do país desejam, já que, na verdade, são oriundos de famílias desconhecidas e humildes. Félix Ventura vê aí uma chance de lucrar. O negro albino aproveita a crescente demanda desse mercado paralelo e começa a colocar seu trabalho em prática. Ventura vende árvores genealógicas, com direito a fotografias e detalhes da vida de cada antepassado fictício. Para isso, ele vive mergulhado em bibliotecas e arquivos, usando a literatura a seu favor:

 

“Acho que aquilo que faço é uma forma avançada de literatura – confidenciou-me. – Também eu crio enredos, invento personagens, mas em vez de os deixar presos dentro de um livro dou-lhes vida, atiro-os para a realidade” (AGUALUSA, 2018, p. 81)

 

Aliás, as interseções entre ficção e realidade ultrapassam, até mesmo, as barreiras do livro físico. No texto da orelha, na edição lançada pela Tusquetes Editores, em 2018, Eduardo Agualusa comenta que, por pouco, ele mesmo não se tornou Félix Ventura. Certa vez – logo após o lançamento do livro -, um general procurou o autor com o objetivo de contratar seus serviços como inventor de árvores genealógicas luxuosas. Em tom de brincadeira, Agualusa finaliza dizendo que, às vezes, se arrepende de ter negado o pedido.

O ponto de virada da narrativa acontece quando uma figura misteriosa – em busca de uma nova identidade angolana – vai ao encontro de Ventura. Diferente de outros clientes, Pedro Gouveia (que a partir de agora será conhecido como José Buchmann) não procura um passado de glórias, mas sim, memórias mais verossímeis possíveis. Mais uma vez, realidade e ficção se misturam, porém, a situação começa a sair do controle quando o próprio vendedor se torna um personagem na nova vida de Buchmann.

 

O pequeno deus noturno (ou a lagartixa narradora)

 

“Não sei quem é. Mas se sou eu quem o sonho posso dar-lhe o nome que quiser, não achas?, vou chamá-lo Eulálio, porque tem o verbo fácil.

Eulálio?! Pareceu-me bem. Serei, pois, Eulálio.” (AGUALUSA, 2018, p. 95)

 

É da parede da casa de Félix Ventura que visualizamos toda a rotina do vendedor, conhecemos os seus clientes e descobrimos um pouco da sua história. Isso porque essa é a perspectiva do inusitado narrador do livro, a lagartixa apelidada de Eulálio. Em contraposição a outros animais, Eulálio um dia já foi um humano e, por isso, ainda carrega diversas características dos mortais. Com sacadas filosóficas e um humor diferenciado, a lagartixa cria um laço de amizade e companheirismo com Ventura. Até mesmo sonhos, os dois compartilham. Aliás, nessa parte da narrativa é impossível não relembrar de outra obra de Agualusa, A sociedade dos sonhadores involuntários. Ambos os livros apresentam personagens que tem uma relação diferenciada com os sonhos. Dessa vez, os sonhos de Eulálio servem para rememorar fragmentos de sua antiga vida humana, além de servirem também como canais de comunicação entre os personagens (José Buchmann e Félix Ventura “visitam” a lagartixa nos seus sonhos).

Ao longo da narrativa de O Vendedor de Passados, o autor brinca com a possibilidade de nosso passado ser maleável – tanto quanto os sonhos – e só existir, afinal de contas, dentro de nossas mentes. Do vencedor do prêmio Internacional Dublin Literary Award em 2017, essa obra é um belo exemplo da literatura angolana contemporânea. Vale a leitura!

 

 

Referência: AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

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