Crítica – A Mesma Parte de Um Homem

O machismo afeta as mulheres de modos muito mais complexos do que somente a violência física, já que uma relação abusiva envolve também toda uma dimensão psicológica e  afetiva. Parte do abuso é fazer com que a mulher acredite ser incapaz sem o homem, que sua existência não será completa sem a parte masculina, e que certas tarefas só cabem a ele realizar.

O início de A Mesma Parte De Um Homem, longa de estreia da diretora Ana Johann sinaliza uma frieza muito profunda. O mundo do filme é sombrio, cinzento, com cores desaturadas e as relações entre as pessoas são tensas. Somos apresentados a três pessoas, o patriarca da família (Otávio Linhares), um homem bruto e rude, Renata (Clarissa Kiste), sua parceira, uma mulher frágil e temerosa do mundo, e Luana (Laís Cristina), a filha adolescente do casal, um tanto retraída.

Não há carinho naquela família. As relações não são nada menos do que burocráticas. Renata exerce seu papel de cuidadora da casa, fazendo comida e afins, e de esposa, satisfazendo as vontades sexuais de seu marido, independente dela sentir prazer ou não. A relação sexual dos dois é filmada de modo seco, já que não vemos nenhum rosto e o movimento é mecânico. Reina também a desconfiança dos atos do parceiro. Quando Luana retorna de uma saída a floresta com o rosto machucado, a desculpa dada de que ela se machucou com algum galho não é digerida muito bem por Renata, que olha com certa raiva para este. Ao mesmo tempo, há uma relação de dependência, com ela pedindo para que ele “volte antes do entardecer” quando este sai para realizar seus afazeres.

Mas ele nunca retorna, devido a um incidente não especificado, e as duas ficam sozinhas na casa distante de qualquer traço de civilização. Uma certa tensão se cria entre mãe e filha, com esta última querendo ser mais independente, enquanto a mãe deseja a proteger do mundo. A situação muda com a chegada de um estranho, Lui (Irandhir Santos). Ferido, o homem desmaia no terreno, e as duas começam a cuidar dele, cuja presença começa a alterar a rotina daquelas mulheres.

Lui representa uma folha em branco para Renata, já que é um homem sem memória, e Renata passa a “criar” uma história para ele, um homem mais próximo do que ela deseja, o oposto de seu falecido marido. Essa presença masculina mais positiva resulta em uma visível melhora na vida das duas. As faces que antes carregavam expressões tristes agora se tornam mais alegres, e as cenas de sexo agora envolvem duas pessoas de fato, com faces, expressões e prazer. Mas claro que nem tudo são flores, e as tensões de gênero ainda estão ali, sob a superfície. 

A Mesma Parte De Um Homem é um curioso tratado sobre a capacidade das mulheres cuidarem de si mesmas, mas não consegue expressar isso muito bem durante a narrativa, já que toda a questão envolvendo o personagem de Irandhir Santos acaba por levantar certas questões que pouco agregam a essa discussão, apesar de construir tensões interessantes a partir da presença masculina.

Esse texto faz parte da nossa cobertura da 24ª Mostra Tiradentes.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *