Crítica – Emergency
É muito normal que, nos filmes, a polícia seja quase sempre vista de modo positivo. Mesmo uma obra que lide com os problemas da instituição, geralmente se trata de um problema isolado, não estrutural. Por isso, é comum que, ao final de tudo, os carros policiais marquem a chegada definitiva da segurança, a garantia de um final feliz. Essa perspectiva, é claro, está longe de ser uma verdade absoluta, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Basta ver, nos dois países, o quanto a população negra e pobre pode sofrer nas mãos desse braço armado do Estado. Quando em Corra!, o protagonista fica tenso com as luzes da sirene, ao invés de tranquilo, uma virada importante ocorre no modo como a polícia é representada nas telas: ela não é a salvação, não para todo mundo.
Esse temor é central a Emergency, longa adaptado de um curta de mesmo nome do diretor Carey Williams. Os estudantes Kunle (Donald Elise Watkins) e Sean (Rj Cyler) estão se preparando para uma noite de festa. Eles serão os primeiros negros da universidade a completarem o “Tour Lendário”, que consiste em participar das festas de todas as fraternidades em uma só noite. Um contratempo faz com que o par retornem para casa, onde encontram uma cena inesperada, para dizer o mínimo: uma mulher, branca, desacordada na sala de estar deles. O outro amigo que estava na casa, Carlos (Sebastian Chacon), absorto jogando videogame, não viu nada acontecer. Kunle tem o impulso de ligar para o 911, mas Sean o impede. “O que a polícia vai pensar de uma mulher branca desacordada em uma casa só com homens negros?” diz ele.
A problemática da situação é evidente, mas, surpreendentemente, o humor ganha o lugar da tensão, com o medo da percepção da polícia fazendo com que o trio tome decisões cada vez mais absurdas para tentar resolver a questão, com uma das tentativas – abandonar a garota perto da casa de uma das fraternidades – se encerrando com uma bem humorada briga entre fraternidades.
Todo esse humor, por mais divertido que seja em alguns momentos, acaba, por vezes, atrapalhando a observação que o filme deseja fazer sobre como a divisão racial americana cria preconceitos em ambos os lados, com a balança sendo muito mais cruel para um, é claro. Em uma das cenas, Kunle, Sean e Carlos param em uma vizinhança para decidir o que fazer, simplesmente conversando, quando são expulsos do local logo que os moradores, brancos, aparecem com celulares em riste, prontos para chamarem a policia a menor percepção de problema. Mais tarde, situação similar acontece com outro trio importante para a trama, os amigos da garota desacordada, brancos, atravessam uma vizinhança negra, e também são questionados por uma moradora, mas sem acusações, com um misto de preocupação e medo.
Mesmo Emergency sendo surpreendentemente leve em sua narrativa, os momentos finais conseguem funcionar em sua seriedade. Se até então as diversas piadas se davam sobre a dificuldade de ser negro nos Estados Unidos e como as pessoas de fora iriam entender a situação, é no climax que isso se torna concreto, quando tudo aquilo que Sean afirmou no ínicio do filme se mostra verdadeiro, homens negros perto de uma mulher branca, o resultado dessa equação já está pronto na cabeça dos policiais.
Na primeira cena do filme, Sean e Kunle assistem uma aula sobre a palavra “nigger”, termo terrivelmente racista, com origens no passado escravocrata dos Estados Unidos. A palavra é exibida no quadro, e Williams compõe o plano de modo que ela fique acima da cabeça de seus protagonistas, um peso em suas vidas, um passado que, como mostra os eventos a partir dali, se recusa a morrer de fato.
Texto para nossa cobertura do Festival de Sundance 2022