Crítica – Lovecraft Country (1ª temporada)

Um dos efeitos mais subestimados na indústria do entretenimento é o legado. Claro que é difícil lembrar disso no mercado atual, onde a nostalgia e a longevidade de uma franquia é um grande fator no sucesso possível de qualquer produto. Mas em obras isoladas e próprias, talvez a última preocupação seja como aquela narrativa vai sobreviver um ou dois anos após seu lançamento. Que efeito ela terá na vida de quem assistiu? H.P. Lovecraft é considerado um dos grandes nomes da literatura de horror americana, que influenciou artistas como Stephen King, Neil Gaiman, Junji Ito, John Carpenter e Guillermo Del Toro. Autor de romances responsáveis por difundir o gênero do horror cósmico, onde criaturas e deuses extraterrestres de aparência grotesca fazem com que a humanidade confronte sua inerente insignificância diante do tamanho do universo, os elementos de suas obras e do seu famoso mito de Ctulhu ecoam pelo cinema e pela literatura até hoje. No entanto, outro converso aspecto do escritor é a defesa de um ideal de supremacia branca. Esses ideais foram defendidos por ele em cartas e poemas e podem ser encontrados em forma de alegoria (às vezes nem podem ser chamadas assim de tão óbvias) em seus romances.

A proposta inicial de Lovecraft Countryda HBO, é explorar o horror Lovecraftiano ao mesmo tempo que o racismo da sociedade americana dos anos 1950. Baseada no romance de Matt Ruff, a série segue o fã de ficção científica Atticus Turner, ex-soldado da Guerra da Coreia, que retorna para sua cidade natal em busca de seu pai, que está desaparecido. Após receber uma carta misteriosa que diz que seu pai está Ardham, Massachussets, Atticus decide viajar até o local de carro para buscá-lo, junto com seu tio Montrose, outro ávido leitor de ficção científica e editor do guia para viajantes negros, e sua amiga de infância Letitia Lewis. Atravessando um país dominado pela segregação racial, o trio logo se vê à mercê do racismo das leis Jim Crow e de monstros e criaturas terríveis, dignos de um livro de um terror.

Criada e escrita por Misha Green, a linha entre ficção e história se atenua para contar as aventuras de Atticus, Montrose e Letitia. Apesar do que o título indica, o roteiro está mais interessado em um sobrenatural mais convencional, envolvendo bruxas, feitiços e fantasmas, do que todo o universo cósmico de Lovecraft. Com isso, há cenas clássicas do gênero que são ressignificadas em um novo contexto, quando levamos em conta a representação negra em obras de terror. Quase sempre relegados à coadjuvantes ou alívios cômicos, aqui os protagonistas leem feitiços, fazem poções e exorcismos. Nesse aspecto, diversos gêneros são homenageados, como a aventura arqueológica de Indiana Jones, no episódio 4.

No entanto, o comentário social nem sempre é sutil ou acertado. As sociedades secretas, a violência da polícia, o imperialismo americano — todos são analogias claras para a sistemática da supremacia branca, um elemento que, embora seja gritante em terras norte-americanas, não é exclusivo dos Estados Unidos. O problema é que não raramente a representação desse sistema beira o choque pelo choque, como a cena em que Christina, a feiticeira branca, revive através de mágica a tortura de um menino negro que comove a cidade (o caso é verdadeiro). Essas cenas tem um propósito maior, e o público sabe disso, mas exatamente por isso que talvez devessem ter sido pensadas com mais cuidado. O belíssimo episódio 6, “Meet Me in Daegu”, é inclusive aquele melhor utiliza a proposta da série, com uma poderosa mensagem anti-imperialista e uma crítica da influência estadunidense em conflitos de outros países.

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Talvez o problema aqui seja exatamente a grande possibilidade. É possível ver, em seus melhores momentos, que a série tem muito a dizer e muitas formas de fazer isso, formas criativas e ousadas. Só que não há uma coerência na forma como essas histórias são exploradas ao longo da temporada. E não é uma questão de diferentes visões dos diretores, pois todos os episódios são escritos pela criadora. O primeiro episódio apresenta a trama de maneira clara e orgânica, dividindo bem a abordagem do racismo e das “sundown towns” (territórios onde negros não podem permanecer após o pôr do sol) e da pegada sobrenatural. A partir do segundo, há alguns tropeços. E não é porque são momentos gratuitos ou essencialmente ruins, mas que se mostram pouco relevantes dentro da trama principal.

Quando o décimo episódio chega ao fim, há uma catarse enorme que parece vir tanto de quem está acompanhando a história como por quem a fez. Elementos de afro-futurismo, ficção científica, terror e suspense são usados para discutir homofobia, gentrificação, masculinidade tóxica, imperialismo, herança cultural e intelectual. É certamente admirável tudo o que Green conseguiu trazer, em uma produção espetacular em termos técnicos. Embora os efeitos especiais não sejam perfeitos em todos os episódios, a ambientação e os figurinos refletem o cuidado da produção em recriar o período e também funcionar como extensão dos personagens.

Merecidamente, Lovecraft Country é uma das séries mais comentadas do ano. Não possui a narrativa mais coesa que você vai encontrar por aí, mas é uma narrativa que se arrisca, que traz coisas novas e necessárias, encabeçadas por um afiadíssimo elenco e recheado de visuais poderosos e impactantes. É uma jornada que tem seus tropeços, mas que certamente terá seu legado no coração de muita gente.

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