Crítica – M8: Quando a Morte Socorre a Vida
É uma enorme felicidade ver que, aos poucos, o cinema brasileiro está explorando cada vez mais o dito “cinema de gênero”, que geralmente se refere a terror. Em um país tão rico de histórias e dinâmicas sociais tenebrosas, onde, para alguns, simplesmente existir representa risco para sua vida, é empolgante observar que cineastas estejam dispostos a colocar nosso problemas sociais pela ótica do terror/suspense. M-8: Quando a Morte Socorre a Vida, é uma dessas obras, que se baseia nas relações raciais para construir a sua tensão.
Dirigida por Jefferson De, a produção acompanha Mauricio (Juan Paiva), jovem negro que passou no vestibular de medicina, o único da turma. Logo na primeira aula de anatomia, o professor divide a classe em grupos, e cada um será responsável por dissecar um cadáver. De imediato, Maurício sente um desconforto: todos os corpos usados na aula são negros, e o cadáver do seu grupo, o M8, passa a aparecer em visões e no terreiro de umbanda que frequenta. Somado a isso, ele passa a interagir com um grupo de mães que protestam em diversos pontos da cidade para saber o paradeiro dos filhos, desaparecidos pelas mãos da polícia, e que Mauricio pensa estar associado com a origem de M8.
É uma grande premissa, que parte de um mistério bem simples – de onde vem esse corpo? – para explorar as diversas problemáticas de ser negro no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro. Em diversos momentos no filme, imagens ao fundo nos lembram o risco que isso representa, o mais emblemático deles sendo um grafite da vereadora Marielle Franco, em 2018.
M8 lembra um pouco Corra!, de Jordan Peele, já que ambos lidam com o desconforto de ser negro em espaços brancos, como na cena em que Maurício vai visitar a casa de uma das amigas da faculdade, cuja mãe não consegue disfarçar o transtorno em vê-lo ali. O filme vai até um pouco além, para mostrar também o desconforto que brancos sentem em espaços periféricos, mesmo os mais “desconstruídos”, embora por vezes seja um pouco panfletário ao lidar com isso.
Há algumas falhas na construção da narrativa, no entanto. O mistério central, a origem do M8, é deixada um tanto de lado, já que o roteiro acaba se interessando mais em mostrar Mauricio navegando esse novo mundo, do que integrar esse mistério a jornada do protagonista. “Me sinto mais próximo desses cadáveres do que de meus colegas de classe” diz o personagem certo momento, mas a obra não explora tanto essa conexão, que se resume a um punhado de cenas oníricas do que uma aproximação real, ou espiritual, entre os dois. Há certos conflitos que também não fazem muito sentido, como a súbita decisão de Maurício em destratar a mãe, algo incongruente com o que vinha sendo explorado até então sobre o personagem.
Apesar de certos deslizes, M8 é uma obra extremamente bem vinda e potente. O sobrenatural é algo pouco explorado no nosso cinema, ainda mais no que se refere a tradições religiosas afro, como a Umbanda, então, é sempre importante que novas vozes passem a colocar esses elementos em nossa tradição cinematográfica.
Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2019