Crítica – Medida Provisória

Medida Provisória, primeiro filme na direção de Lázaro Ramos, começa buscando observar uma complexidade do racismo na sociedade. Para isso, até é claro, mas não busca expressar isso a todo momento na fala de seus protagonistas. Desse jeito, dá espaço, por exemplo, para um discurso em plenário no Rio de Janeiro do protagonista Antonio (Alfred Enoch), um advogado que busca entrar com uma causa na Justiça de reparação histórica dos negros. Só que ele encontra um local com pouquíssimos deputados e é ouvido até por um trabalhador negro do local. Ou seja, em apenas pouco tempo, entendemos que a narrativa irá atrás dessa voz dos pretos (que são chamados, na produção, de “melanina acentuada”) perdida na sociedade e, ao mesmo tempo, por complexificar um debate que está sendo feito de forma banal.

No início, Lázaro até tenta buscar isso. Ele introduz a família de Antonio, sua esposa Capitu (Taís Araújo) e o cunhado André (Seu Jorge). A direção tenta implementar um microcosmo de amor, afeto, carinho, tentando retirar qualquer imagem agressiva que possa existir em cima desses personagens negros. Em uma possível situação de briga inicial, André prefere a ironia a trocar socos – ele sabe que poderá acabar sendo visto como errado da situação. E nesse contexto, o longa até consegue transmitir um certo olhar conjunto. O problema é que isso já é feito de forma banal e simplista demais, a ponto de não termos interlocuções com esses personagens.

Desse jeito, a partir do momento em que é executada uma medida provisória para que negros sejam obrigados a voltar para a África como uma “reparação histórica do Brasil”, eles se veem em situações diferentes. Enquanto os dois homens estão presos em um apartamento que não pode ser invadido pela polícia (embora ainda sofram represálias, como o corte de bens como luz, água e comida), a única mulher acaba adentrando um Afrobunker, uma espécie de NeoQuilombo desse futuro distópico.

Bom, se inicialmente Medida Provisória parece querer ser algo além dessa casca que se apresenta, ele vai se diminuindo a cada nova cena. Ao não dar relevância para um desenvolvimento de seus personagens, toda a dramaticidade do longa se baseia numa percepção externa do telespectador. Desse jeito, por exemplo, a tensão dos dois dentro da casa, sem poder sair, é nula. Não há comoção, construção, nem nada. Ramos baseia essa perspectiva apenas no olhar exterior do público, ou seja, de dois homens negros sofrendo represálias de um governo. Do mesmo jeito, todo o olhar para a personagem Capitu é tratado como expositivo e simplista. Em uma cena ela grita que já sofreu todo o falado no diálogo anterior por ser uma mulher negra. Novamente, o diretor constrói tudo a partir do âmbito de fora dos telespectadores e nunca na própria encenação.

E esse elemento aparece caro quando o filme quer ser “relevante”. Em suas linhas de diálogo, ele tenta transformar a complexidade demonstrada nos momentos iniciais, em frases de efeito (“eu também sofro preconceito pelo meu cabelo”) ou por metáforas visuais óbvias, que nunca fazem verdadeiro sentido com o que a obra quer explorar (o desejo pelo chocolate do ministro ou o leite sendo tomado pelo negro do café). Essa eclosão de elementos aparece em um dos momentos mais chocantes da narrativa: quando a morte de um homem negro é comparada a de um homem branco (e LGBT). Obviamente, o diretor não parece ter essa intenção, mas transforma esse instante em um grande olhar crítico para o movimento negro por si só, contradizendo todo o discurso sobre a falta de voz para esse povo. É quase como se a direção dissesse que a reação do oprimido pudesse ser igual à reação do opressor. Novamente, não há méritos ou julgamentos, apenas uma contradição na própria forma que o longa se apresenta.

Ao se apresentar como algo a mais e querer explorar uma visão negra desse cinema político, Medida Provisória acaba sem saber o que quer. Ao mesmo tempo que tenta ser chocante, ele acaba com um fim inteiramente anticlimático, que transforma uma sequência que renderia uma explosão por uma força maior, em algo apenas bobo. O grande problema de Lázaro Ramos é apostar apenas em algo que está além da tela do cinema. Antes de querer falar sobre qualquer coisa, um filme precisa ser um filme. E talvez o que mais falte em Medida Provisória seja justamente isso. Além disso, uma perda mais impactante ainda é a falta de identidade e alma própria. Falta ser menos para fora e mais para dentro. Na cena final, o racismo parece se transformar em algo tão simplista que nem mesmo a direção sabe o que fazer.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *