Crítica – Menu Prazer: Les Troisgros
Ao comentar com uma amiga que iria assistir um filme de quatro horas sobre um restaurante, ela fez uma única recomendação, “Vai de barriga cheia para não sentir fome”. A observação faz sentido, pois poucas coisas despertam tão bem o apetite quanto imagens de belos pratos sendo preparados, como todo social media de restaurante sabe. Fui assistir Menu Prazer: Les Troisgros, nova obra documental de Frederick Wiseman, genuinamente preocupado com essa possibilidade, de sentir fome e não ter nada além de pipoca para resolver a situação.
Isso, no entanto, não aconteceu, e não digo isso de modo pejorativo, mas sim como testamento da sabedoria de Wiseman na condução da obra. O caminho das refeições para serem comidas com o olhar seria muito fácil, há um sem fim de vídeos no YouTube e séries da Netflix que realizam exatamente isso. O foco, como sempre é nas obras do documentarista, está nas pessoas e na sua relação com seu espaço e ocupação.
É um olhar que, inevitavelmente, desmistica certas entidades, se em City Hall, o trabalho de uma prefeitura vira algo muito mais cotidiano, do que a politicagem que estamos acostumados, especialmente enquanto brasileiros, Menu Prazer se volta para o ambiente da alta culinária. O longa retrata a rotina do Les Troisgros, um restaurante francês dono de três estrelas Michelin conduzido por César Troisgros, filho de Michel Troisgros, que também atua como chef no estabelecimento. Um negócio de familia, cuja história terá mais detalhes muito mais a frente no filme.
Há uma frase dita próxima à conclusão da narrativa que sintetiza bem o filme em questão, “culinária é movimento”. A rotina do restaurante não começa com a chegada dos clientes, mas muito antes, e acompanhamos pai e filho na feira, adquirindo os insumos necessários para a construção do menu, junto ao outro herdeiro, Léo. As ideias voam e são anotadas no papel. Que tal essa carne com esse vegetal e molho? Somente com as memórias dos sabores, o trio tenta decidir se os elementos combinam, enquanto também se preocupam com a parte prática. Haverá peixes o bastante para todos?
Tudo isso, é claro, feito no estilo característico de Wiseman de não intervenção, estamos ali, na cena, do modo mais direto possível, e nenhum dos personagens parece fazer noção de que está sendo gravado. Os planos são, em sua maioria, estáticos, com as situações se desenrolando de modo fluido, sem interrupções. Observamos o montar dos pratos, as conversas entre garçons e clientes, as explicações das harmonizações, as piadas entre as pessoas e até as irritações. Michel dedica um tempo da rotina da cozinha para ensinar um dos cozinheiros a maneira correta de preparar um cérebro de cordeiro, por exemplo.
Menu Prazer: Les Troisgros não tem uma história, mas tem uma estrutura rítmica que fornece uma lógica aos acontecimentos. Ele é montado como se um dia se passasse, começando pela manhã, indo pelo horário do almoço, pausa da tarde e jantar, e dentro dessas sequências, sua movimentação dita a ordem das cenas. Um prato que sai da cozinha, geralmente indica uma sequência no salão do restaurante, e vice e versa.
Nesse arco, certos temas vão surgindo organicamente, como a ideia de legado e família, presente desde o início, mas se fortalece diante de algumas conversas de Michel com os clientes. Mas Wiseman não parece buscar esses momentos, que chegam e vão com a mesma atenção dada ao processo de empratar a comida. Ele deixa as coisas acontecerem, permitindo seus personagens florescerem naturalmente, enquanto nós acompanhamos, silenciosamente, todo esse processo que nem sabíamos estar sendo desenvolvido. É tudo muito invisível, e a imersão é completa, é difícil não se sentir uma pequena parte do mundo dos Troisgros.
Essa crítica faz parte da cobertura do Senta Aí do Festival do Rio 2023