Crítica – Monster
Dentro de seu formato a lá Rashomon, Monster é quase um filme antológico, contando três diferentes histórias que abordam a nossa relação com a alteridade, ou seja, o outro. Essa figura tão presente nas nossas vidas, e tão fácil de ser simplificada, a palavra do título logo vira um rótulo a ser colocado nos outros, aliviando o protagonista do momento de suas dores e colocando em outrem toda a responsabilidade.
Mas o novo filme de Hirokazu Kore-eda demora a se abrir dessa maneira, empregando uma série de subterfúgios para conduzir o espectador para uma conclusão, somente para mostrar o quanto ela está errada. A abertura do longa mostra um grande incêndio, evento que é citado diversos momentos ao longo da história, com um personagem diferente sendo citado como o possível responsável pela tragédia. Nesse momento, entretanto, ele é só um evento sendo observado por Saori (Sakura Ando) e seu filho, Minato (Soya Kurokawa).
Nesse primeiro momento, a narrativa parece abordar a relação entre mãe e filho. O garoto começa a agir estranhamente dentro de casa e com ferimentos pelo corpo, uma interrogação da matriarca revela o (possível) culpado: um dos professores de Minato, Hori (Eita Nagayami). A cena onde Saori confronta os funcionários da escola revela a disposição que temos em desumanizar o outro, mesmo que tenhamos boas intenções. Os professores e a diretora parecem robôs, diante da atuação mais viva de Sakura e, nessa sequência, fazem sentido que sejam vistos assim: na visão da mulher, eles são simples obstáculos em sua busca pela justiça para o filho. Mesmo o pouco de humanidade que ela reconhece na figura da diretora, devido uma tragédia que esta sofreu se torna uma arma contra a mesma.
Mas a perspectiva muda, então, para a de Hori, e pessoas que antes pareciam robôs da burocracia, agora ganham outros contornos. No fim das contas, são só pessoas querendo fazer seu trabalho, enquanto Saori se torna uma ameaça pouco vista nessa parte, mas muito citada. Koreeda não mostra somente as mesmas situações por visões diferentes, mas apresenta também momentos novos, que deixam o cenário ainda mais complexo do que aparenta. Camadas vão se desfazendo e sendo acrescentadas, com informações apresentadas anteriormente, sendo descontextualizadas, objetos ganhando novos sentidos, especialmente um isqueiro, que passa a ser ligado com o incêndio inicial, e cada nova aparição, é para indicar um suspeito diferente.
Mas Monster não é um filme investigativo no sentido policial. Não está se buscando culpados ou, pelo menos, tratar a culpa como algo individual. Com essa trama multifacetada, Koreeda realiza uma análise da sociedade japonesa moderna, cujos males geralmente são mais sentidos nos seus elos mais fracos, e no caso dessa história, são as crianças.
É com Minato que o filme se abre totalmente e conta a “verdadeira história”, a qual não irei discutir muito para evitar estragar certas surpresas, pois esse momento da obra se beneficia muito do prazer da descoberta, do entender certos comportamentos e frases que foram observados em outros contextos. Minato passa de filho protegido, à bully, para um ser completo, contraditório. É a metamorfose final da obra, onde todos os rótulos caem por terra, e a tese de Monster ganha mais força: não há monstros, não do jeito que gostaríamos de pensar, somente pessoas que ferem e são feridos. É algo apresentado por diversos filmes? Sim, mas a eloquência deste encanta.
Essa crítica faz parte da cobertura do Senta Aí do Festival do Rio 2023