Crítica – Não Há Mal Algum
Existe um motivo para o conceito de “banalidade do mal” ser tão pertinente, mesmo décadas depois de ter sido elaborado por Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann. O nazismo pode até ter acabado – em termos -, mas as atrocidades cometidas por pessoas que estavam somente “seguindo ordens” seguem acontecendo. Essa ideia é o grande mote para Não Há Mal Algum, do diretor Mohammad Rasoulof, vencedor do Urso de Ouro no 70º Festival de Berlim.
O longa é uma antologia formada por quatro histórias, ligadas unicamente pela temática de discussões acerca da violência estatal, sempre tendo foco nas pessoas encarregadas de executá-la, e a relação delas com essa função. A primeira acompanha Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um pai e marido carinhoso, porém cujo o trabalho noturno é um mistério para a família. A segunda narra o sofrimento de um soldado diante da possibilidade de executar alguém, até encontrar uma pequena chance de saída. A terceira mostra um soldado retornando para sua terra natal, que teve a paz bruscamente alterada pelas suas ações, embora ele ainda não saiba disso. E a última mostra uma sobrinha indo visitar o tio, um médico que vive em uma espécie de exílio.
De longe, a mais bem executada de todas elas é a inicial, que usa do cotidiano para construir a sua tensão. São longos planos relativamente estáticos de Heshmat realizando seus afazeres diários, como buscar a mulher no trabalho, a filha na escola, ajudar sua mãe idosa, entre outros. Tudo que um “homem bom” poderia fazer. Mas, uma sombra paira sobre suas ações, estabelecida logo no início da história, em que Heshmat sai de um lugar altamente protegido para ir pra casa. Quando a revelação sobre suas atividades chega, é um choque, porém filmado com a mesma casualidade das cenas do cotidiano. É um dia normal para Heshmat.
Não Há Mal Algum nunca supera essa primeira seção, e as seguintes acabam sofrendo um pouco diante disso. Apesar de sempre serem interessantes, especialmente por conseguirem adequar a mise en scéne ao que está sendo contado. A segunda história, por exemplo, é um tanto mais nervosa, devido ao seu protagonista, e os planos estáticos dão espaço a uma câmera mais tremida, enquanto o soldado luta contra a possibilidade de ter que matar alguém. Já a terceira ganha ares de romance, se apoiando em cenas mais poéticas e em composições mais carregadas de simbolismo, como o casal que, até então, sempre era visto junto, passando a ter objetos bloqueando o contato entre os dois quando ele revela um grande segredo.
É uma pena que, ao final de tudo, a história escolhida para fechar a antologia seja mais um novelão do que uma interessante discussão sobre violência estatal. Não chega a ser ruim de fato, é só tremendamente deslocada diante do que veio até então, levantando timidamente questões que as narrativas prévias já haviam discutido com muito mais vigor. Nada como a discussão filosófica entre soldados da segunda ou os questionamentos entre o soldado e a sogra da terceira. As coisas simplesmente acontecem até que ao final a questão é levantada e o curta – e o filme – se encerra. Não Há Mal Algum começa com um estouro, e termina com um sussurro, mas o caminho de um para o outro também vale a pena.