Crítica – Sorte de Quem?

O cinema dificilmente escolhe pelo caminho do meio. Ou ele é muito, extravagante (e até honesto por isso), ou ele vai atrás do pouco, do simples, do mínimo necessário. E quais os caminhos que fazem essa “terceira via” ser ignorada? Justamente porque o cinema é a arte da mentira, de encenar a mentira. Podemos até estar tratando de uma história real, até mesmo de um documentário, que transpõe de um realismo. Entretanto, a forma como isso é feito, sempre está atrelado a alguma inverdade, já que é assim que a sétima arte pode se consolidar como ela é hoje em dia.

Desse jeito, Sorte de Quem? tenta não ser um caminho mediano ou até mesmo um pouco de um ou de outro. Ele está atrás justamente de ser os dois em conjunto. Quando é muito, é demais. Quando é pouco, pode até mesmo ser ignorado. Essa construção se transforma em necessária para fazer a narrativa partir do tragicômico até a condição mais dramática possível em seus instantes finais. Os elementos são fundamentais para compreender o que o diretor Charlie McDowell está atrás: explorar uma essência inteiramente humana no absurdo de seus personagens.

Esse mais novo projeto original da Netflix se inicia através da invasão de um homem (Jason Segel) a uma casa de um homem muito rico. Um local de campo, afastado da vida urbana, e que, aparentemente, está abandonado. Ele vai até lá porque parece saber que nenhuma pessoa vai incomodar o roubo que será realizado. No entanto, para sua surpresa, esse rico CEO (Jesse Plemons) chega com sua esposa (Lily Collins) para passar uns dias de folga. Surpreso, o assaltante até tenta sair, mas acaba por encontrar com o casal dono da casa. Desse jeito, ele acaba fazendo ambos reféns e tenta arrumar alguma forma de sair inteiramente despercebido do ambiente.

É curioso perceber como realmente parece uma proposta boba e simplista e todo início do longa faz justamente isso ser escrachado na cara do público. Dessa forma, não sabemos o nome de ninguém ali presente nos acontecimentos, porém começamos, aos poucos, a tentar construir personalidades para eles. E Sorte de Quem? poderia trabalhar (e até teria material para isso) essas questões em um campo do suspense, na busca de compreender o que estaria acontecendo. O diretor até se utiliza desses elementos, só que sempre sendo interessado em trabalhar uma comédia de erros através da geografia do local. Assim, a casa, mostrada desde a abertura, é um elemento fundamental para nos entendermos nesse terreno e de que jeito as coisas podem acontecer. Algo bem similar ao que Jacques Tati faz em Meu Tio, por exemplo.

Essa comédia se desenrola muito por um lado físico e ingênuo dos personagens. É como se nem mesmo eles acreditassem nesse absurdo de situação. Um traço bem claro disso é a tal arma do homem que invade a casa, já que, em boa parte da produção, nunca a vemos, e o CEO chega a duvidar que ele realmente estaria com algum artifício mortal. Em outra situação, há uma discussão sobre o quanto seria preciso para que o bandido consiga mudar de identidade por completo e fugir daquela região inteira. Essa teatralidade transforma a narrativa em um grande confronto de egos, como se os personagens precisassem ser melhores do que os outros naquele momento, especialmente os masculinos.

Apesar disso, a obra vai dando espaço, de pouco em pouco até gerar uma grande mudança a partir da cena de noite, para uma condição dramática do casal. É um elemento que aparece como pequeno inicialmente, com pequenas farpas sendo exibidas e comportamentos mais agressivos pelo homem rico, mas que se transformam em cada vez maiores com o passar do tempo. E, assim como para os protagonistas parecia algo menor, vai virando algo primário de debate do filme, o que acarreta em um gigantesco descarrilhamento do trilho. Se antes o que interessava era o grande conflito de classes em que nem entendemos os motivos dele estar ocorrendo, agora o plano vira abordar uma subordinação feminina. Contrasta por completo e é inteiramente perdido no meio do caminho.

Nesse olhar mais elaborado para o joguete de controle para uma situação tensa, Sorte de Quem? consegue se sobreassair e ser irônico a todo instante, seja entre os personagens, ou com o público por si só. Porém, a partir do momento que vai para um caminho menos jocoso e mais dramático, sendo até literal demais (constrastando novamente com sua primeira metade) parece que uma outra trama se inicia, e os elementos anteriores pouco importa. Claro que há coisas a se salvar, especialmente nessa narrativa pulsante e que busca verdadeiramente ser esquita. Contudo, se a intenção de Charlie McDowell era ser um Alfred Hitchcock cult, talvez ele devessa olhar bem mais para as brincadeiras e a falta de seriedade que estão no próprio trabalho.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *