Crítica – Zeros and Ones

Poucos cineastas estão tão desinteressados em segurar a mão do espectador como Abel Ferrara. A grande reviravolta em Enigma do Poder aconteceu praticamente fora da tela, com o perdido personagem de Willem Dafoe tentando reconstituir acontecimentos isolado em um hotel, para entender o que exatamente aconteceu, e seu último filme, Siberia, declara abertamente que racionalidade é um obstáculo.

Assim, não é surpresa que seu mais recente trabalho, Zeros and Ones, seja similarmente obtuso em sua proposta, onde não saber ao certo o que está acontecendo é parte integral da experiência. No longa, somos apresentados a um mundo parecido com o nosso, em vários sentidos. Medidas de lockdown foram implantadas, máscaras e termômetros são onipresentes, assim como o frasquinho de álcool em gel. Mas há algo mais de errado com esse mundo, uma guerra está acontecendo, de natureza indeterminada. Não se sabe muito bem quem é o inimigo, mas se sabe que o alvo é o Vaticano, e é por isso que o soldado JJ (Ethan Hawke) está em Roma para evitar…ou não.

Há um caos global em cena, evidentemente, mas Zeros and Ones é um filme muito pequeno, sendo um thriller de pequenos acontecimentos, pequenos espaços. JJ vai para um pequeno quarto de hotel, para um beco, é tudo muito restrito. Isso se deve, em parte, é claro, às medidas de segurança devido à nossa pandemia, que o diretor Abel Ferrara se adaptou muito bem, trazendo à tona o estilo de baixo orçamento tão característico do início da sua carreira. Mas também serve muito bem a sensação de não estarmos com a informação toda em mãos, mas um pedaço muito mínimo desse todo.

O protagonista caminha pelas ruas de Roma com uma pistola e uma câmera na mão, empunhadas lado a lado, e a presença de imagens gravadas é uma constante ao longo do filme, assim como o uso dessas imagens para propósitos mais bélicos. “Abaixe a arma!” diz, em certo momento, uma revolucionária para o protagonista, e o que é abaixado é, na verdade, a câmera do personagem. Há uma espécie de “brincadeira” com a realidade daquilo que se grava, mas também da sua irrealidade, um binário já exposto no título do filme. “Vemos” o Vaticano ser explodido, mas o que vemos na verdade são duas imagens diferentes, a do Vaticano, e a da explosão, é novamente o low budget do Ferrara servindo a propósitos temáticos, já que fica evidente que não se pode confiar muito no que vemos dentro de uma tela, é uma realidade fácil de manipular.

Zero and Ones

O catolicismo também é latente na produção, outro tema muito caro ao diretor, e acontece até mesmo uma espécie de aproximação entre JJ e Jesus, este último descrito pela narração inicial do filme como “mais um soldado na guerra santa”. O protagonista passa por uma espécie de jornada martirizante, onde ele é avisado que “terá sua própria existência negada” pelos seus aliados, não distante da negação de Jesus por parte de Pedro.

Em Zeros and Ones, Ferrara está tentando encontrar uma nova forma de ver as coisas, uma mudança de postura. Imagens podem sim destruir, mas também podem trazer à tona momentos singelos, como duas crianças no parque, mostradas ao final do filme, e o martírio, a “estrada difícil” citada na narração em certo momento, é o que leva à vida real. Apesar da escuridão tão presente no longa, Ferrara aponta que, ao final de tudo, o sol irá raiar.

Esse texto é parte da cobertura do 74ª Festival de Locarno

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