Crítica – Sibéria

No cenário da crítica de cinema atual, impera a visão do filme facilmente digerível, com todos seus elementos simplificados ou até mesmo mesmo explicados de modo bem didático. No máximo, uma ambiguidade calculada para que diversos vídeos de “final explicado” possam ser produzidos em seguida. Não há espaço para arte que não se apoie nesse aspecto que possa ser facilmente vendido e que busque promover reflexões sem respostas fáceis.

Nesse sentido, Siberia, de Abel Ferrara, é a antítese desse cinema de fácil compreensão, existindo em um espaço onde a compreensão emocional, e não tanto racional, é rei. Em um dos raros momentos de objetividade do longa, o personagem do mago diz sem meias palavras, “sua racionalidade é um obstáculo”. Siberia se deleita no aparente irracionalismo da sua forma, com porões se tornando grandes penhascos e a chance de ganhar em uma máquina de azar sendo subitamente interrompida por um ataque de urso.

Mas há um fio condutor nisso tudo. Ele é Clint (Willem Dafoe, o “muso” de Ferrara), um homem que ocupa um pequeno bar nos confins gelados da Sibéria – ou de qualquer outro lugar gelado, precisão geográfica não importa tanto assim – atendendo pessoas que não falam seu idioma. Uma série de arquétipos passam pelo estabelecimento: o nativo, vó, mãe, mesmo que todos falem línguas diferentes, Clint se relaciona com eles de modo amistoso. Diante disso, parece significativo que a única pessoa que interaja em inglês com o protagonista tenha a cena interrompida pelo urso citado previamente, como se a compreensão plena de algo representasse uma agressão ao íntimo do protagonista. “Você finge se abrir para o mundo” diz o reflexo na água de Clint.

Apesar de conter outros, mas poucos, personagens, Siberia é mais um monólogo do que outra coisa. Após um tempo no bar, Clint parte para uma caverna, um espaço de encontro em alguns mitos, e em algumas versões da “Jornada do Herói”, o ponto central da crise, e lá a jornada de encarar a si mesmo, metafórica e literalmente, começa. Tempo e espaço são abdicados em favor da lógica emocional, pura e simples, e Clint passa a encarar seus erros, arrependimentos, decisões e a memória de seu pai, também interpretado por Dafoe

Ao seu modo, o filme remete um pouco a A Árvore da Vida, de Terrence Mallick. A conexão temática é óbvia, os dois tratam de homens que refletem sobre a vida, e a relação com seus familiares. Porém, o modo que isso é expressado também, sempre diante de algo “maior” que essas situações humanas. Para Mallick, isso era o cosmos, enquanto Ferrara se volta para a natureza, que sempre predomina nos cenários, e cuja câmera sempre busca enfatizar a imensidão dos locais. Isso acontece tanto por planos abertos, quanto por colocar elementos menores em cena, favorecendo a dificuldade de se atravessar esses espaços, do que a conexão cósmica do outro diretor.

Devido a aura de simbolismo, os momentos mais dramáticos funcionam mesmo que certas angústias sejam introduzidas na mesma cena em que elas são discutidas, todavia funciona justamente pelo seu teor simbólico. Clint se encontra com uma figura que representa sua ex-mulher (os créditos finais a descrevem como tal), e não precisamos saber o passado dos dois para entender o que se passa ali – basta ter tido um relacionamento significativo na vida para entender os sentimentos em cena.

Siberia, tal como o local Sibéria, é uma obra que se recusa a ser domada, por entender que o ser humano e sua interioridade não são sujeitos unicamente a objetividade e lógica, e que às vezes, para ir além, é necessário abrir mão dessas coisas. Não é uma obra que se esgota com facilidade e, acima de tudo, nos faz querer ir mais a fundo nela, mesmo muito depois de assistida.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *