Deixando Neverland e o outro lado das histórias
É impressionante como Michael Jackson fundamentou sua carreira na construção não apenas um astro da música pop, mas também de uma figura midiática e importante ao seu tempo. Seja no estilo de roupas se tornando tendência ou em suas contestações políticas, ele gerou um ser de extrema importância dentro do mundo dos anos 70 até a atualidade, sendo chamado o Rei do Pop por um motivo. Em boa parte do fim dos anos 90 e nos 2000, sua figura esteve envolta em acusações de pedofilia e críticas a seu jeito um tanto quanto esquisito de lidar com crianças. Sua infância, extremamente conturbada, parecia ser a resposta para isso tudo, porém não uma justificativa. Dessa maneira, Deixando Neverland traz a tona a história de dois meninos, agora adultos, revelando quase de maneira confessional os abusos sexuais praticados pelo ídolo durante seu período infantil. A busca pelo outro lado da história já famosa se torna o enfoque do filme, em uma busca por entender uma verdade.
Dan Reed é bem direto ao expor que irá compor sua narrativa quase em atos. No início, a explanação sobre essa figura quase mitológica e a aproximação dos meninos (Jimmy Safechuck e Wade Robson) a ele; depois, o surgimento de comportamentos esquisitos, mas ainda não agressivos; os abusos sexuais; a troca desses meninos por outros sofrendo a mesma coisa; e, por fim, o legado dessa trajetória até os dias atuais. É uma fundamentação da trama baseada mesmo em uma criação emocional e conectiva com a audiência, algo que funciona dentro da ideia de ser um documentário totalmente expositivo sobre os acontecimentos. Não existe nenhum traço de buscar observar o lado de Michael, advogados ou família dentro de tudo, apenas uma sustentação de explanação das vítimas.
Afim de expor ainda mais uma correlação desse crime com o crescimento dos meninos, a obra sempre que está relatando mais diretamente situações vividas por eles, mostra imagens de arquivo deles quando ‘puros’ e atualmente, explanando as histórias. Existe, é claro, uma criação da encenação pautada em uma força dramática, visto que toda a situação por si só é baseada nisso. Os planos, a divisão dos atos, a descoberta sobre realmente terem sido abusados – como a fala de um deles que percebeu apenas isso quando teve uma filha. Tudo isso sustenta ainda mais uma trajetória pautada em acusações, aumentando o teor de gravidade com o tempo.
As 4 horas podem até parecer um catalizador, porém funcionam dentro das bases do universos. Diversos pontos acabam se repetindo aos montes, principalmente sobre ambos dormirem na casa do cantor, mas sempre servindo a um andamento narrativo de construção da personalidade. É uma desmistificação da imagem de Jackson (como é fortalecido nas cenas mostradas nos créditos), queimando toda sua história como uma pessoa pública, construidora de sonhos para os mais diversos públicos enquanto permaneceu vivo sendo artista. O objetivo do longa é realmente reconstruir todo esse passado até de certa forma afetivo que ambos possuem, apenas para destruí-lo em sequência. E o mesmo vale para a audiência, revivendo boa parte desse legado que está para ser destruído.
Existem momentos mais focados em um teor pesado, fato quase climático do enredo. Reed quase se “encanta” – mesmo essa não sendo a palavra certa -, nesses instantes, buscando e salientando os mínimos detalhes por parte dos dois. Inclusive, é intrigante a maneira que a montagem esquece todos os outros personagens cercando aquela narrativa, chegando a fundo dentro de cada um dos pesadelos. Isso se transforma em um peso de verdade, podendo até ser chocante demais para parte da platéia. É óbvio que alguns fãs do cantor poderão relatar ser uma mentira, porém a obra pouco se importa com isso. A intenção é realmente ambientar e trazer essas quase provas a público, deixando quem assiste impactado e tentando interpretar os pequenos detalhes em torno dos atos cometidos por Michael. A suavização dessas memórias passa bem longe aqui.
Talvez uma das relações interessantes seja aquela que Jimmy e Wade compartilham com o artista, pois é possível perceber que ambos demonstram um certo carinho por ele. Eles cresceram em torno de uma mente talentosa, formadora de uma época de grande impacto dentro da música americana, onde sua arte foi extremamente relevante. O documentário cataliza isso, deixa bem claro que esse lado provavelmente nunca será esquecido, mas destrói a figura icônica proposta. Esse carinho é ainda demonstrado em situações deles se sentirem ressentidos por terem sido trocados, chegando a envolver o ator Macaulay Culkin dentro da circunstância.
Deixando Neverland busca claramente trazer todo um lado quase anti-midiático dessa história. Enquanto o que foi falado por boa parte dos veículos de imprensa e decidido por lei se tornou favorável a Michael Jackson, o diretor Dan Reed tenta chegar até o fundo dessas tramas excluídas para o grande público. É um filme bastante de protesto, de denúncia claramente, sem se importar muito em uma parcialidade clara. Parece bastante uma resposta a um tempo perdido, a um infância perdida, a encontrar respostas mesmo que tarde demais.