Imagens que gritam, falas que silenciam: os ativismos de Spike Lee
Logo após a sessão de Infiltrado na Klan, mais novo “lance” (como são chamados seus filmes) do diretor e ativista americano Spike Lee, tive uma discussão com um amigo sobre como retratar tempos caóticos sem saturar o uso da imagem, seja através do uso de arquivos de época e colagens ou através do próprio material filmado. Para ele, o filme peca pelos excessos, faltando um pouco de sutileza à equação de crítica + denúncia, podendo ter sido mais sugestivo e menos explícito em sua corajosa abordagem. Eu já penso de uma maneira bem diferente: entendo que estamos falando de um produto de nicho, como a maioria das obras do diretor, que, de tão explosivos e urgentes, acabam tanto incomodando e repercutindo negativamente por parte de quem se vê representado em tela (é difícil vestir a carapuça e admitir que você é parecido com um personagem de moral duvidosa) quanto sendo ovacionado por quem também está na batalha, exercendo no dia-a-dia os muitos ativismos que Lee retrata em seus filmes.
Polêmico por escancarar seus pensamentos na face da opinião pública, sem o menor pudor de ser rejeitado por seus opositores, o mesmo se aplica a seu cinema. A cada nova década, Lee parece se reinventar magicamente ao menos em uma ocasião. Foi assim na década de 80 com Faça a Coisa Certa, na década de 90 com Malcolm X e nos anos 2000 com o subversivo e ousado A Hora do Show e o sintomático A Última Noite. Todos esses filmes são espasmos de consciência de alguém que chegou ao limite do cansaço, enxergando a arte como resistência e a política como extensão natural do cinema, e não ao contrário. Em um período onde muitos filmes mais sugestivos e “reflexivos” possuem um esgotamento em si mesmos por quererem panfletar um discurso acima de tudo e acabam deixando a paixão, mesmo que estancada no caos, de lado, Lee é um caso raro de diretor que faz cinema social de um modo que costuma agradar a gregos e troianos, não em um viés discursivo, mas narrativo. Ágeis e dinâmicos, seus filmes são vibrantes, coloridos e até certo ponto gostosos de serem assistidos, por pulsarem energia em seus planos.
Em Faça a Coisa Certa, por exemplo, há uma cena emblemática em que vários personagens, de diferentes etnias e histórias de vida, falam como se estivessem representando seu grupo social, posicionados frontalmente à câmera, cuspindo opiniões, literalmente, em direção a seu opositor. Curioso notar como o opositor não é apenas o grupo representado no próximo plano, mas, principalmente, o próprio espectador, que representa um sistema corrompido, a falta de esperança de mudança. Lee fala para todos, e através do uso de esteriótipos, acaba representando e denunciando toda a intolerância que pode existir em uma comunidade que deveria ser esparsa e multiplicada, mas é segregada em grupos que não se comunicam entre si. O contexto, como sempre, é muito bem utilizado a favor do filme, com a prerrogativa de um longo dia de verão ser capaz de exaltar os ânimos e desmascarar as faces do cidadão de bem, que precisa de um empurrãozinho para vomitar ódio.
Essa polarização de opiniões, por si só, acaba sendo um espelho de tudo aquilo que vemos na imprensa, nas redes sociais e em nossas próprias casas. Nesse sentido, não só seu novo filme em si parte desse choque de ideias como também o evidencia, colocando, graças a uma montagem extremamente dinâmica e ágil, em planos complementares, uma plateia toda formada por brancos assistindo e aplaudindo o filme Nascimento de Uma Nação enquanto negros se emancipam em sua força oratória, exercendo seu poder de fala para se munir com o que possuem em mãos do ódio sistêmico que abala o mundo. Spike Lee acerta em cheio ao contrapor ideologias de oposição e intersecciona-las através de intertextos culturais e sociais, seja o uso de tela divida com cenas do filme e cartazes de outras épocas e outras obras, ou mesmo cenas de outros filmes, como visto no plano inicial, que traz à discussão momentos de E O Vento Levou para dar seu recado.
A apropriação de imagens e intertextos não para por aí, uma vez que Infiltrado na Klan acaba também sendo o retrato de um período de efervescência cultural para a cultura negra, referenciado através de sua trilha sonora e aspectos culturais e sociais o poder de um único período na vida de várias pessoas diferentes lutando por uma mesma causa: se libertar da ideologia do ódio, não necessariamente pautada pelo ódio a negros e judeus, mas a uma nação diversa e rica social e culturalmente.
No fim, o último “lance” de Lee acaba sendo tanto um manifesto quanto um filme que escancara e denuncia a raiz de todo o ódio sistêmico que se alastrou pelo mundo nos últimos meses. Visto por uma esfera micro, ele é o que é, e sua força está na não-sutileza e na não-sugestão, mas visto por uma esfera macro, é um filme que mesmo quando escancarado, acaba deixando nas entrelinhas uma reflexão acerca da hipocrisia da classe média branca que clama por lei e ordem mas só faz uso da lei quando convém a ela. Vivemos tempos obscuros, e Lee sabe como poucos que devemos resistir. Pois bem, resistiremos!