O Ódio que Você Semeia: Tensões sociais acirradas em poderoso drama racial
No dia 1 de janeiro de 2009, um jovem afro-americano chamado Oscar Grant foi morto a tiros pela polícia de Oakland, na Califórnia. Oscar estava deitado de bruços no chão da estação de metrô Fruitvale e foi baleado após uma intervenção da polícia em uma briga fora do vagão lotado. O caso ganhou muita repercussão devido aos vídeos filmados de diversos ângulos, tornando-se virais na internet e sendo exibidos na televisão posteriormente. Em 2013, o adolescente Trayon Martin estava desarmado quando levou um tiro do policial George Zimmerman, que foi a julgamento após o incidente e foi declarado inocente. É este tipo de ocorrência, infelizmente, muito comum nos Estados Unidos, que inspirou a autora Angie Thomas a escrever seu primeiro e premiado romance, chamado de O Ódio que Você Semeia. Sucesso de crítica e de público, era questão de tempo para que a história fosse transportada para a tela grande.
A história fala sobre Starr Carter, uma jovem afro-americana de 16 anos que mora em um bairro onde a maioria da população também é negra. Starr tem uma conexão muito forte com sua identidade enquanto mulher negra e com suas raízes, graças à sua criação familiar, tornando o fato de frequentar uma escola de classe média alta, frequentada quase que inteiramente por alunos brancos, um pouco conflitante para ela. Após a polícia invadir uma festa do bairro em que Starr está, ela é amparada por seu amigo de infância Khalil, que a leva para casa de carro. No meio do caminho, a dupla é abordada por um policial, que exige que Khalil saia do carro. Quando o jovem, fora do carro, se aproxima da janela para verificar se Starr está bem, o policial atira nele três vezes.
Muita coisa poderia ter dado errado nesse filme. Trazer uma história que apresenta um enorme peso social e político atualmente em uma abordagem mais popular poderia ter sacrificado muitas das discussões que o material de origem quer trazer com sua narrativa. No entanto, o diretor George Tillman Jr. e a roteirista Audrey Wells conseguem transportar a história de Starr de maneira coerente para o audiovisual e, talvez, para algumas pessoas, até mesmo de forma mais impactante, já que ter a imagem pode ter mais peso do que as palavras poderiam trazer.
Como não poderia deixar de ser, este tipo de filme depende muito de seus protagonistas. A âncora aqui é a Starr interpretada por Amandla Stenberg, uma das atrizes da nova geração que mais se destacou no cinema juvenil nos últimos anos. No entanto, é aqui que Stenberg revela seu verdadeiro talento. A atriz sabe equilibrar a doçura e a familiaridade da personagem com a fúria e a dor que a narrativa lhe traz com maestria. Quando ela está feliz, seu sorriso é genuíno e encantador e, quando sua raiva e seu desolamento afloram, a emoção em seus olhos pega o espectador pela garganta e o traz direto para o conflito que Starr está vivendo.
Apesar disso, o elenco do apoio não é ofuscado pela performance de Amandla, apenas agregando a ela. Regina Hall tem pouco espaço como a matriarca da família Carter, mas Russell Hornsby brilha como o pai Maverick Carter. Desde a primeira cena do filme, quando Maverick tem aquela conversa que todo pai precisa ter com seus filhos negros, conhecemos um personagem com profundo apreço e amor pela família e pela história da comunidade negra (Maverick ensina seus filhos os mandamentos dos Panteras Negras). Esse fato engrandece não apenas o peso do filme como construção narrativa e de personagem, mas também com seu peso social.
Todavia, o filme não é perfeito. Após a morte de Khalil, há um flerte com uma crítica à construção de perfil racial que é muito presente na América, já que há inúmeros casos de jovens negros assassinados pela polícia todos os anos, assim como uma breve menção à instrução que os oficiais recebem em seu treinamento, algo que é intrínseco à brutalidade policial. A trama se desvia, porém, para os conflitos que se criam no bairro de Starr após a morte de seu amigo, com as desavenças entre gangues e o líder do tráfico de drogas King (interpretado por um competente Anthony Mackie).
A mensagem do filme, então, fica um pouco confusa debaixo dessas camadas. A autora nomeou sua obra com uma referência ao conceito apresentado pelo rapper Tupac: “THUG LIFE”, ou “The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody”. Em tradução livre, “O ódio que você dá aos pequenos ferra todo mundo”. Há uma breve conversa no filme sobre esse conceito entre Starr e Khalil. Há um sistema, em pleno funcionamento, que trabalha na inferiorização e marginalização de pessoas negras. E esse sistema tem um resultado refletido em violência, preconceito e conflitos sociais que assolam não só o Estados Unidos, mas todo o mundo, há anos. Se temos uma obra que tem essa crítica no âmago de sua história, pessoalmente, me parece uma perda de oportunidade discutir o crime e o conflito entre negros (que é uma realidade e também precisa de atenção) ao invés de focar em uma discussão mais ampla, mais condizente com o acontecimento que desencadeia toda a história da película e o desenvolvimento de sua protagonista.
Mesmo com essa mensagem confusa, O Ódio que Você Semeia não perde seu peso e sua importância. Ancorado por grandes performances e uma história que ativa discussões que precisam ser feitas, o filme prova que o subgênero das adaptações literárias juvenis tem muito para acrescentar à cultura pop em geral. Só é preciso saber, assim como Starr, ouvir e usar sua voz na hora certa.