Resenha – Guerra do Deserto (HQ)

No início dos anos 1960, o quadrinista argentino Enrique Breccia iniciava sua carreira. Filho do também quadrinista Alberto Breccia (de clássicos como O Eternauta e Ernie Pike), ele se transformou em também um dos mais renomados da história das HQs latinoamericanas. É importante destacar que Enrique viveu para  produzir quadrinhos em um período muito mais complexo que seu pai: em meio à ditadura militar argentina e os anos anteriores de intenso conflito político. Por isso mesmo, sempre foi uma das principais ideias de Breccia trazer esses elementos para debate, reconstruíndo uma história de um país em frangalhos. E, dessa forma, boa parte das histórias presentes em Guerra do Deserto se localizam nessa discussão.

A HQ lançada pela editora Veneta traz consigo cinco curtas histórias relacionadas ao início da produção do argentino. A primeira é a título, que retoma uma espécie de origem do país, na relação dos indígenas e homens brancos. Nesse sentido, é até interessante o trabalho de Enrique em quase fazer uma reconstituição histórica de um passado nebuloso. Da mesma forma, isso tem tentado ser feito no Brasil com o período da Ditadura Militar, com obras como Ditadura no Ar e Entre Cegos e Invisíveis. O grande conceito por trás de tudo é justamente retrabalhar elementos clássicos já reconhecidos pelo público sobre esse momento e redimensionar por uma narrativa individual. É isso que Breccia realiza aqui.

A edição da Veneta de Guerra do Deserto traz quase um escalonamento curioso para esse desenvolvimento do quadrinho. Como a inicial é a trama título, vemo uma reconstrução da luta dos indígenas dentro da Argentina. Enquanto isso é muito disseminado em diversos outros países da América do Sul, nesse país essa é uma guerra bastante esquecida no tempo. Ao trazer como uma grande contação de história – quase de um jeito professoral – o autor detalha o elemento fundamental para entender diversos preconceitos presentes no país atualmente, em especial o racismo.

Cada conto que vem em seguida também traz outra característica curiosa que é a não espetaculirazação de apenas um lado. Breccia deixa claro que existe um problema ali que precisava ser resolvido, porém não houveram apenas uma perspectiva de “bons” e “maus”, visto que existe uma carga de complexificação em cada uma das narrativas. Um indígena que teve toda sua família trucidada pelos homens brancos acaba estuprando de uma mulher branca; ao mesmo tempo que os homens brancos realizam táticas altamente destrutivas como forma de tentar acabar com o grupo indígena. É uma espécie de retroalimentação da guerra, que nunca poderá ter um fim.

O artista não tem medo de consolidar sua referência ideológica política em um fechamento com a primorosa história “Argelia 1959”. Junto de “O Amigo”, as mais intrigantes e complexas, mesmo em pouquíssimas páginas. “Argelia” é a mais distante de todas em um caráter mais direto, já que não retrata sobre a ditadura argentina ou qualquer mito de fundação daquele país. Enrique caminha alguns passos até o continente africano, para poder relatar todo o horror do conflito de libertação da Argélia. É uma obra mais dura, que não usa elementos cinzentos para os protagonistas. Na realidade, o autor deixa bem claro que, para ele, existe um lado que constrói o medo acima de tudo e outro que quer apenas ser livre. De certa forma, é uma HQ que complementa todos os elementos de libertação propostos anteriormente, porém sob uma perspectiva nova.

Enrique Breccia cria, de forma bem orgânica, uma concepção nova de ideologia e de país. Em Guerra do Deserto, seu olhar é bem menos para uma visão dos personagens unicamente – na maioria dos casos, esses pouco importam. O que realmente sobressalta no desenrolar dos acontecimentos é toda a concepção de um mundo novo que precisa ser fundamentado. Não é possível transformar o que é o presente sem olhar para o passado e suas opressões constantes. De certa maneira, enquanto seu pai, Alberto, possuía uma visão mais de um momento presente, Enrique parece querer transitar no tempo e abraçar as causas a qualquer espaço e momento. De certa forma, poderíamos estar, como relatado, tratando de uma HQ quase militante, mas não é isso que acontece. Guerra do Deserto é sobre reflexão e transformação do pensamento histórico de um país (e mundo) em destruição até hoje.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *