Resenha – Árduo Amanhã (HQ)

Todo o início de Árduo Amanhã contrasta muito com o que veremos pela frente. O clima é de tranquilidade, e a paz reina. Nesse ambiente, um local instituído de paz e amor, já que o casal principal acorda, faz sexo e vive em meio à natureza em um trailer. Todo esse espaço aparentemente diferente vai ser colocado em prova no decorrer das páginas. Inicialmente, pelo lado dos cenários, já que saímos do campo limpo para ir até a cidade, em que tudo parece mais rígido. Nesse local, descobrimos que Hannah trabalha como cuidadora de uma idosa e também faz parte de um movimento político de mulheres contra o governo comandado por Zuckerberg (apenas isso). Enquanto isso, Johnny é responsável pela construção da casa de ambos, mas prefere ficar em casa fumando maconha.

Eleanor Davis constrói um interessante clima de ebulição a passos. Primeiramente, pelo lado de um entendimento sobre essa sociedade, exemplificado na cena em que a protagonista – que sonha em ser mãe – vê uma criança na rua e acaba sofrendo uma infração de trânsito. Ela é multada por uma policial. É um Estado de vigilância a todo momento, algo que é debatido através da digitalização desse mundo (algo que pode relacionar ainda mais o nome do presidente com o do criador do Facebook, Mark Zuckerberg). Mensagens são trocadas pelo celular, e a ligação parece um meio apenas de emergência. Além disso, as ativistas alertam para a vigia do poder.

Esse caos crescente da narrativa é fundamental para compreender o pensamento de Hannah. Ela parece ser alguém interessada na construção de uma família, de uma tradicionalidade, porém que também quer ser disruptiva e parece ter uma paixão secreta por uma amiga do grupo político. Já Johnny, mesmo inteiramente preso em seu mundo de “paz”, começa a perceber em um amigo uma tentativa de fuga desse universo de prisão a todo instante – seja no relacionamento, pelo que ele sente, seja na sociedade. Esse pano de fundo demonstra como todo o ambiente inicial de aparente tranquilidade é, na verdade, uma grande prisão e escape para um mundo cheio de camadas. Essas tão presentes na fala de Hannah ao dizer que quer ter um bebê (“A gente luta pelo futuro com paz”). Ela quer deixar um legado, seja de qual maneira for.

Ao mesmo tempo que destaca e debate todo esse potencial político do universo digitalizado, Árduo Amanhã vai consolidando dois personagens que parecem quase sem perspectiva. Apesar de buscarem algo, no fim das contas, a rotina os parece prender em apenas um eterno ciclo. Seja ele com a mulher acordando para ir até a casa da idosa para quem trabalha, seja do marido vivendo apenas relaxando. E isso decai no sexo e na tentativa de ter um filho. Eles parecem nunca encontrar escapatória. Davis faz isso um potencial narrativo muito profundo ao sempre deixá-los muito aproximados, sem espaço para respiro. É quase como se fizéssemos parte desse âmbito e nos víssemos como eles. Mesmo querendo algo diferente, fugir do que vivem, eles acabam precisando ficar vivendo a mesma vida, e os mesmos dias.

Apesar de curto (tem cerca de 150 páginas), o quadrinho lançado pela editora Tordesilhas sabe bem tratar seu clímax. Se estamos convivendo com essa monotonia, somos jogados para uma intensa queda no mundo real, em que essas pessoas irão sofrer represálias. Em um Estado “fascista” no qual não é capaz de conseguir viver sem estar totalmente vigiado e preso. A tristeza irá aparecer em algum momento e é preciso de algo para se agarrar. A sequência do casal se encontrando próximo das páginas finais faz de Árduo Amanhã entender com uma complexidade única os personagens. A unidimensionalidade deles (que é refletida até em falas meio clichês de um grupo de esquerda) se transforma em um pouco de respiro para viver. Aliás, isso é muito bem retratado na forma como esse exterior – pelo qual eles tanto falam – nunca realmente aparece. Ele pode ser real, ou não. Por isso, ao fim, Eleanor Davis deixa uma mensagem: é preciso haver esperança. De qual forma e independente de como ela seja.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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