Crítica – Crimes of The Future

AVISO: esse texto contém spoilers de Crimes of The Future

O maior adversário do Velho é o Novo, e vice e versa. O último, eventualmente, suplanta o primeiro, se não de modo total, pelo menos majoritariamente, o que não impede sua resistência, mesmo que, ironicamente, ela dependa da novidade para ser eficaz. Esse conflito norteia muito da narrativa de Crimes of The Future, onde os diálogos e personagens frequentemente mencionam coisas novas em relação a coisas antigas. Uma frase que se tornou icônica já nos primeiros trailers do filme é “cirurgia é o novo sexo”, e ao longo do filme, outras “novidades” surgem, assim como as “velhas”.

E o próprio mundo apresenta essa divisão na tela. A sociedade encara um problema curioso: novos órgãos estão surgindo, sem funcionalidade aparente, e os limites de dor estão desaparecendo, se tornando uma cena comum ver pessoas se cortando, por puro prazer. Se o interior da humanidade está em transformação, o mesmo não pode se dizer pelo cenário que os cerca, sempre em ruínas, degradado. É comum ver barcos tomados pela ferrugem na paisagem, e não há natureza viva em volta, é tudo seco, árido. 

O longa foi alardeado como um retorno de David Cronenberg ao gênero do body horror que o consagrou. Faz sentido diante dos temas envolvidos e de algumas cenas específicas, mas o foco é outro. Curiosamente, Crimes of The Future se aproxima mais do filme policial/noir, e, na filmografia do diretor canadense, se assemelha muito à Senhores do Crime.

A primeira semelhança é obvia, pois, trata-se de uma nova parceria entre o cineasta e Viggo Mortensen, aqui interpretando Saul Tenser, um artista que faz da retirada dos seus neo-órgãos uma performance, com a ajuda de Caprice (Lea Seydoux). Similar ao personagem do produção de 2007, Tenser também está tentando se infiltrar em um grupo, no lugar da máfia russa, temos uma seita que acredita que essas mudanças corporais representam um novo passo da evolução humana, que tem como símbolo se alimentar de uma estranha barra roxa. 

Mas o ponto central é a presença de uma criança cuja existência pode alterar o status quo de forma expressiva. Em Senhores do Crime, um bebê pode ser a peça chave para a condenação de um mafioso, emCrimes of The Future, Brecken (Sotiris Sozos) é uma criança ainda mais especial: seus órgãos o tornaram capaz de consumir plástico. Sua existência, no entanto, é curta. 

Logo após sua aparição, uma das poucas cenas com a presença de natureza viva, ele é morto por sua própria mãe, incapaz de vê-lo como um ser humano normal. Mesmo sem vida, sua presença joga uma sombra na narrativa. “Tememos que esses órgãos se estabeleçam geneticamente e gerem crianças que não são, estritamente falando, humanas” afirma Whippet (Don McKellar), funcionário público que trabalha no Registro Nacional de Órgãos. Mas, seria função dos aparelhos burocráticos definir o que é ou não humano? Quem é responsável por definir isso? Como a burocracia pode determinar o que é natural?

É o velho querendo exercer controle sobre o novo, mesmo que este fuja de quaisquer linhas previamente definidas.  Essa “guerra silenciosa” é travada unicamente no campo das ideias, e o longa escolhe se desenvolver, primordialmente, por diálogos. Ajuda e muito que as atuações sejam uniformemente excelentes, mesmo que cada personagem pareça operar em uma “frequência” muito específica. A interpretação de Seydoux é muito mais natural, por exemplo, que a de Kristen Stewart, com uma atuação mais excêntrica e afetada.

Saul é um instrumento nesse conflito. Apesar de sua arte envolver os orgãos, ele não tem apreciação pela sua condição, e trabalha com a polícia para entrar em uma seita, cuja proposta é que esses novos órgãos podem, sim, ter função. No centro desta crença está Brecken, que, conforme explicitado anteriormente, possui um conjunto de neo-órgãos funcionais.

Há um quê de Jesus na criança. A concepção dos dois é contraditória, um é fruto de uma mulher virgem, o outro nasceu com os órgãos que o pai implantou artificialmente. Uma concepção imaculada, e a outra “naturalmente antinatural”, os dois representantes de um mundo novo, mas nenhum dos dois veio à tona de fato, e suas existências se tornaram espaço de disputa.

Essas implicações religiosas só estão presentes nos minutos finais da produção, mais dramaticamente intensos do que apresentado até então. O corpo de Brecken se torna matéria-prima para uma performance de Saul e Caprice, que irão realizar uma autópsia ao vivo, revelando o interior do menino ao mundo. O governo, entretanto, agiu antes, trocando os neo-orgãos de Brecken por algo mais banal, para o choque de todos, incluindo Saul.

Ao relatar a situação para seu contato na polícia, revelando seu desgosto com toda a situação, o oficial diz para Tenser: “Parece que você está se tornando um crente”, que o artista retruca, “para se infiltrar, uma parte de você deve acreditar. A posição de Saul remete também a outra figura importante do catolicismo: O apostolo Paulo de Tarso, cujo nome de batismo é “Saulo”. Os dois ajudaram na perseguição de grupos do qual eventualmente passaram a fazer parte. 

A “conversão” de artista se concretiza na cena final. Após passar todo o filme tendo problemas para comer, Caprice lhe oferece uma das barras da seita, e não só ele consegue degustá-la com facilidade, o ato lhe dá um alívio tão grande que a sua expressão parece de pura graça religiosa. O frame final é uma referência mais que explicita à A Paixão de Joana D’arc, de Dreyer.

Em seu momento mais emocional,Crimes of The Future se encerra, abrindo mais questões do que as fechando. Estaria Saul se tornando um apóstolo, tal qual seu homônimo? “Corpo é realidade”, diz uma das TV’s durante a perfomance de Tenser, uma realidade podada de sua capacidade de mudança. Parece a ocasião certa para um profeta da Nova Carne surgir, apresentando possibilidades que, antes, pareciam ser impossíveis.

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