Resenha – Laerte: Manual do Minotauro (HQ)
Laerte é gênia. Essa é uma frase que pode até estar em desuso, especialmente por algumas críticas que a quadrinista sofre, porém precisa ser reinterada. Se tem algum nome dos quadrinhos nacionais que conseguiu ultrapassar barreiras, esse nome é realmente Laerte Coutinho. A autora de 70 anos foi, desde a década de 80, fundamental na construção imagética e também da memória coletiva das tiras pelo Brasil. Por isso mesmo, com o desenvolvimento ao longo do tempo, a autora precisa sempre ser revisitada, especialmente para perceber seu olhar para o futuro das coisas. E nisso Manual do Minotauro talvez seja seu trabalho compilado que mais consiga trazer elementos que mostrem isso.
Lançado pela Companhia das Letras, a HQ é um grande trabalho de pesquisa que reúne mais de 1500 tiras publicadas entre 2004 a 2015. O início, é bem na época que Piratas do Tietê passou a ser remodelado, trazendo novas abordagens para a produção quadrinística da autora. Nesse meio tempo também, foi quando Laerte começou a ser perceber como uma mulher trans, e não no corpo de homem que esteve durante toda sua vida. As mudanças políticas, além da absorção da internet e os novos ventos da sociedade, são temas que perpassam toda essa obra.
É bem interessante como a ideia do Minotauro do título – que é um personagem das tiras – está também bastante conectada com as mutações de pensamento sobre orientação sexual da autora. Ele é um ser estranho, sem um chifre, que parece nunca fazer realmente parte dos meios sociais que participa. De certa forma, é quase um alter ego da quadrinista, ou seja, uma personificação de quem ela seria. De todo jeito, esse é apenas um elemento que está conectado com essa temática, visto que, ao passar dos anos, é possível ver essa questão bem mais assumida. Diversos quadrinhos retratam sobre não se encaixar no corpo em que está, além das mudanças do masculino para o feminino.
Esses elementos criam uma congruência bem própria Manual do Minotauro. Apesar de serem de anos bastante distintos, e também com as mudanças na forma dos desenhos, é curioso perceber a maneira que Laerte consegue colocar uma certa conexão indireta em todas suas tiras. Parece realmente que esse lado filosófico com humor ácido faz bastante de um mesmo universo que não quer se desgarrar. E, dentro disso, a autora sabe do que é capaz. Por iss mesmo, brinca e explora a forma como os quadrinhos serão direcionados a todo instante. É uma aula realmente de experimentação da nona arte.
A artista também absorve bastante os rumos políticos do país nessa estrada. Existe um caminho mais otimista inicialmente, quase como se essas histórias se conectassem com universos em que o futuro é positivo. Contudo, mais próximos do final, começamos a perceber um olhar mais apurado para o medo e a desinformação, como se elas fossem características de um outro mundo que estivesse entrando dentro desse inicial. É esquisito realmente descrever, porém, a quadrinista faz como poucos e transforma sua narrativa em uma grande epopeia sobre os diversos olhares do nosso universo.
Para qualquer um minimamente interessado nos quadrinhos nacionais, Laerte – Manual do Minotauro é, verdadeiramente, uma obra prima. É um trabalho que se preza bem mais para o simplismo, como Laerte sempre fez, mas que traz diversos elementos de mundo capazes de ter um olhar crítico. Ao mesmo tempo que é complexa e bastante filosófica, a autora também é divertida e sabe rir das próprias situações drásticas, confusas e cômicas. Em um mundo em que as HQs cada vez mais buscam o realismo, talvez esse trabalho aqui seja um respiro de que as tiras podem ser tão incríveis quanto qualquer coisa.