Crítica – O Garoto Mais Bonito do Mundo

“Ninguém deveria dormir em uma cama suja assim” diz Jéssica, a atual namorada de Björn Andrésen, o titular Garoto Mais Bonito do Mundo, para ele ao ver o estado do seu apartamento. Björn há muito não é um garoto, os cabelos loiros deram lugar a uma longa cabeleira grisalha, o rosto sem marcas que tanto assombrava o protagonista de Morte em Veneza agora está cheio de rugas, acompanhado de uma barba, também grisalha. A imagem que vemos agora parece mais de uma estrela do rock envelhecida do que o ideal de Beleza que chegou a representar na juventude. Após ouvir a fala de sua parceira, ele responde “é assim que você dorme quando não se entende como ser humano”.

No filme de Luchino Visconti, Tadzio, o personagem interpretado por Björn, também não era exatamente uma pessoa, mas sim somente objeto de profunda adoração pelo compositor em decadência Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde). Tadzio é distante, frio, por vezes lhe é permitido ser criança, mas a impressão geral é mais de alguém inalcançável do que um jovem. Representar um ideal pode até ser algo invejável, mas é uma posição desumanizadora, e os documentaristas Kristina Lindström e Kristian Petri buscam retratar os impactos que isso teve na vida de Björn.

Essa desumanização na ficção se estendeu para a vida real também, O Garoto Mais Bonito do Mundo conta com uma série de imagens de arquivo mostrando os bastidores da escolha para o papel de Tadzio, quando Visconti viajou por diversos países – todos europeus, vale ressaltar – em busca de seu intérprete. A cena do primeiro encontro entre Bjön e o diretor marca pelo modo como este trata o jovem, na época com 15 anos, que se torna um boneco nas mãos do cineasta, em uma das falas do protagonista, ele lembra que Visconti só falava quatro coisas para ele “vá, pare, vire, e sorria”, e essa relação já é sentida nessa reunião inicial.

A importância de se explorar os bastidores de Morte em Veneza é óbvia, mas o documentário se torna um pouco problemático ao conectar o tratamento do jovem Björn com a sexualidade de Visconti e sua equipe, composta em sua maioria por homens gays. O documentário infere que o adolescente pode ter sido abusado por essas pessoas, mas sem esclarecer muito a questão. Apesar de, mais para frente, a produção deixar claro que a obsessão com a figura do documentado não se resumiu a população LGBT, conforme as cenas do Japão bem demonstram, essa conexão não recebe o cuidado que merece para que não se reforce certos preconceitos.

O Garoto Mais Bonito do Mundo também acompanha o Björn do presente, agora com 66 anos, explorando as consequências dos eventos da juventude na sua vida adulta. É interessante perceber que até mesmo os privilégios da época continuam afetando profundamente seu comportamento. O jovem que tinha tudo sendo feito para ele hoje é um adulto que não sabe cuidar de si, deixa seu apartamento completamente sujo – até que a namorada venha limpar – e não tem o hábito de pagar as coisas do próprio bolso, o que também é motivo de brigas com sua parceira. Temos também alguns reencontros, como o de Andrésen com um diretor de comerciais japoneses, que assume não ter dado o melhor tratamento para o garoto na época, “a atmosfera nos impedia de nos preocuparmos com isso”.

Assim, o documentário de Lindström e Petri busca retornar um pouco do que foi perdido quando Björn foi eleito por Visconti “o garoto mais bonito do mundo”. Se antes ele era filmado com adoração, aqui sua figura esguia caminha por lugares dilapidados, marcados por uma forte luz azul e pela melancolia, assim como lhe é permitido ser falho, e chorar. Ao se preocupar com o homem tal como ele é, O Garoto Mais Bonito do Mundo retorna à Terra a imagem de uma pessoa que até então, pertencia a um patamar inalcançável por todos, mas especialmente, pelo próprio Björn.

Esse texto faz parte da nossa cobertura da Mostra de São Paulo 2021

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