Crítica- Regra 34

A regra 34 é conhecida por todos aqueles que, como eu, passaram e passam tempo demais na internet. Se não for o seu caso, vai uma explicação: ela determina que, se alguma coisa existe, haverá uma versão pornográfica dela. Nesse sentido, Regra 34 é um título mais que apropriado, pois tem como matéria prima o sexo, como a cena introdutória faz questão de apresentar, com Simone (Sol Miranda) realizando seu show erótico para sua audiência na internet, em busca de “tokens”, a moeda virtual.

Mas o filme de Júlia Murat, premiado em Locarno, não é sobre sexo. Assim, há duas narrativas dentro do longa. A primeira diz respeito a Simone, ou Si, como é apelidada, encontrado novas dimensões em sua sexualidade e também no seu trabalho como camgirl, que irá fazer com que ela busque conhecer, e talvez ir além, dos seus limites.

A segunda envolve o “trabalho do dia” da protagonista, que estuda direito e se dedica a ser uma promotora pública. Ela, como mulher negra, é particularmente sensível às falhas da justiça brasileira, e se vê cara a cara com a incapacidade das leis nacionais de lidarem com certas questões , e até acaba por atrapalhar aqueles que deveriam ajudar.

São dois rumos densos, cada um com suas problemáticas particulares, e um dos primeiros obstáculos de Regra 34 é conseguir unir essas questões de modo eficaz. A princípio, essa questão da distância entre as duas vidas de Simone é até bem demarcada, com Murat fazendo questão de dividir o trajeto que ela realiza no seu dia a dia, se aproveitando da paisagem urbana tipicamente carioca, como o Maracanã no entardecer, ou as ruas estreitas de Santa Teresa.

Mas logo esses universos parecem ocupar espaços muito distintos, a ponto de não se construir uma relação concreta entre elas, mesmo que o roteiro se esforce para tal. “O BDSM não existe fora da sociedade” alerta uma amiga de Simone, sociedade essa que, como a parte jurídica do filme bem destaca, é racista, machista e afins.

Mas basta somente afirmar isso? Esse ponto é martelado tantas vezes que beira a paródia, a frase “vivemos em uma sociedade patriarcal” é emitida repetidamente nas discussões entre estudantes e professores. É verdade? Claro, mas e aí? Regra 34 parece estar muito contente em simplesmente afirmar que esses problemas existem, mas não consegue fazer nada além de emitir frases de efeito sobre a situação.

Pior, o longa acaba por também reproduzir certos comportamentos que condena. Se Simone deseja explorar sua sexualidade, de maneira que pode ser prejudicial à ela, as únicas personagens que alertam ela sobre essa possibilidade são brancas, beirando o tropo “white savior”, com certo tom de tutela, enquanto o outro personagem negro da trama também entra na onda de Simone.

Assim, por mais que Regra 34 levante questões interessantes no âmbito do sexo e da justiça, ele não parece saber o que fazer muito além disso, sem saber como as articular de modo eficaz. Cabe uma cena de pegação logo após o testemunho de uma mulher que sofreu violência doméstica? Como apresentei no início do texto, dois universos existem na narrativa, mas há problemas ao lidar com os dois de modo simultâneo.

Esse texto faz parte da nossa cobertura do Festival do Rio 2022

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