Resenha – Morto Não Fala e Outros Segredos de Necrotério (Marco de Castro)
A capa do livro Morto Não Fala e Outros Segredos de Necrotério é uma espécie de crânio humano com diversas facetas. Tem seu lado mais “humanóide”, por assim dizer, com um olho humano com pele. Tem sua perspectiva visceral, com a carne, o sangue e o crânio. E também tem seu lado um pouco “puro” dos seres humanos, na caveira, aquilo que nos faz ser igual no fim das contas. Essas perspectivas da porta de entrada para o livro são importantes para observar as camadas e olhares que Marco de Castro irá trabalhar ao longo da narrativa e dos pequenos contos – além da trama principal – que fazem parte dela. Desde o mais básico até o que nos difere.
Para se embebedar em pequenas histórias sobre morte e o mal no mundo, seguimos uma linha principal que conecta todos eles. Ela é através da estudante de medicina Jucélia. Perdida nos próprios livros na biblioteca da faculdade que estuda em São Paulo, ela acaba se atrasando para o estudo da anatomia de um corpo para a prova que terá em breve. Mesmo chegando atrasada na sala em que pode dissecar, ela tem a ajuda de um faxineiro no local, que até a chama para ir em um pagode logo após o fim do trabalho. Entretanto, a jovem se vê em um grande labirinto de história quando, ao abrir o cadáver e começar a conversar com ele (primeiramente assustada e, depois, curiosa), ela se vê em um mundo de subtramas bizarras e macabras.
Marco é jornalista e se utiliza da sua experiência na cobertura do noticiário criminal na cidade de São Paulo para fazer de Morto Não Fala e Outros Segredos de Necrotério um livro sobre as reflexões das mortes na cidade. Cito recorrentemente a capital paulista já que a obra busca se localizar, a todo o instante, nesse ambiente, como se fosse comum para o autor. Desse jeito, somos levados a diversos pontos desse cosmo, desde seu lado mais urbano, com os prédios que oprimem qualquer um que passa, até a vida complicada da periferia. Com esses olhares, o texto propõe um fatalismo sobre uma sociedade falida, incapaz de se comunicar, cercada de preconceitos, e ainda totalmente desconectada entre si.
Fica claro como a escrita tem uma visão de tentar observar o que está “por trás” (não a toa a imagem primária de uma estudante de medicina abrindo um corpo) de tudo que vemos diariamente na televisão. Não a toa, a recorrência do jornalismo como fonte primária de informação, seja de alguém de classe alta ou de uma pessoa mais pobre. Essa construção da visão de mundo da violência é o que nos conecta de alguma forma como sociedade – especialmente na maneira como cada classe social vai interpretar essas perspectivas e o que está ou sendo mostrado em tela ou sendo lido em um jornal, por exemplo.
Apesar de usar de forma até curiosa esses elementos, mantendo o leitor como parte intrínseca dessas narrativas (quase o fazendo se sentir culpado por estar lendo isso tudo), o livro usa e abusa da própria narrativa em prol política. Longe de ser um problema. Contudo, De Castro não busca sutileza alguma ao abordar esses pontos, em contraste bem grande na forma como os personagens são desenvolvidos em cada conto. Se todo esse universo é composto por figuras complexificadas, a narrativa principal é transformada em apenas um caráter linear. Desse jeito, há toda uma construção da guerra de classes e de uma discussão racial que, apesar das intenções do escritor, soam apenas superficiais e até meio banais.
Morto Não Fala e Outros Segredos de Necrotério é um livro que consegue, de cara, gerar uma conexão forte com o público leitor, que se compadece por situações e, ao mesmo tempo, é alguém diretamente relacionado com todo esse universo da violência urbana do país. O problema é que isso tudo falta ser aprofundado para um debate mais complexo, e o autor não consegue ultrapassar de uma certa barreira padronizada, esteriotipada. O discurso político não é problema, o ponto é que ele apenas soa como raso, no fim das contas. Em contraste com as pequenas histórias, profundas, que falam o que o autor está, justamente, querendo trabalhar.