Resenha – Nenhuma Dor (Gal Costa)

Gal Costa lançou um álbum! Isso por si só já é assunto e motivou algumas entrevistas nos maiores veículos de imprensa do país. Mas não é só isso. A cantora lançou um álbum com regravações e em todas as faixas acontece um dueto com uma voz masculina da cena contemporânea: Jorge Drexler, Seu Jorge, Rubel, Criolo e outros.

Outra notícia que movimentou o nome de Gal na imprensa foi a descoberta de alguns áudios, que por conta de um incêndio na extinta TV Tupi, eram dados como perdidos. Os áudios são de um especial gravado com ninguém mais ninguém menos que João Gilberto e Caetano Veloso para a mesma TV Tupi. Especial que, inclusive, motivou a volta de Caetano do exílio só por causa de um telefonema de João Gilberto. Caetano já tinha retornado ao Brasil anteriormente, mas a volta fora bastante angustiosa para o baiano. Mas com o telefonema de João, Caetano toma coragem e retorna de vez ao país. Caetano narra assim em Verdade Tropical o telefonema de João: “Nada daquilo ocorrerá mais [prisão e duras], é Deus que tá me pedindo para eu lhe chamar. Ouça bem: você vai saltar do avião no Rio, todas as pessoas vão sorrir para você. Você vai ver que o Brasil te ama”. Dito e feito. João Gilberto estava de passagem pelo Brasil depois de uma temporada no exterior. Gal Gosta com seus agudos, o repertório, João leve e jogando pingue-pong e com o entrosamento meio tímido entre os baianos fez com que a (re)descoberta desses áudios (a imagem, infelizmente, se perdeu) pelo pesquisador Pedro Fontes entrasse para os anais da música brasileira.

Porém, o tema é o recente disco da Gaúcha (apelido carinhoso com que Gil a chama). O disco se chama Nenhuma Dor e tem 10 faixas em dueto – todas regravações. A capa é uma Gal séria em preto e branco com imagens recortadas, também em preto e branco, de Gal em várias fases da vida e ainda acompanha o nome dos parceiros vocais, do título do álbum, da própria cantora (em destaque) e de uma espécie de pintura em vermelho e amarelo: eis, portanto, o fogo-álbum que abranda nossos corações em meio ao rescaldo da maior pandemia do século.

O curioso é justamente isso. No meio de uma tragédia mundial que já matou milhares pessoas, chega Gal Costa e diz: “Nenhuma dor”. Seu tema otimista é bem vindo em tempos onde o otimismo é taxado de utopia. Uma espécie de Acabou Chorare, Brasil. Mas tudo isso marcado por fotos e canções gravadas em meio à ditadura civil-militar. Ou seja, o tema otimista não dissimula a caretice (apontado pela própria cantora em entrevistas) e o nosso imorredouro autoritarismo. Talvez seja essa a mensagem – contraditória, por que não, de sua geração: em meio ao caos e a tristeza, a cultura surge como refúgio e que, ao mesmo tempo, nos apetrecha contra a opressão e o mandonismo.

O disco abre com a faixa “Avarandado”, em  que Gal tem como parceiro de voz o hermano Rodrigo Amarante. A música composta pelo onipresente Caetano fez parte do primeiro álbum de Gal (e de Caetano), Domingo de 1967. A nova versão não deixa de ter o frescor bossanovista do primeiro dueto, mas sua ginga e o canto já maturado de Gal  o faz mais balançante e paga menos tributo à (clara) influência de João Gilberto no disco de 1967. É simpática a participação de Amarante e a faz uma faixa-abertura bem alto astral. O disco segue com uma pérola caymmiana, “Só Louco”, que Gal canta com Silva, grande expoente da chamada Nova MPB. A própria Gal em entrevista recente disse que preferiu essa versão a versão de seu disco-tributo de 1976. O canto suave de Silva continua com o clima suave do álbum e seus “lá-rás” encaixam bem com a volta de voz da Gal que culmina com os dois cantando juntos. Caymmi ficaria orgulhoso, assim como Gal diz ter ficado. O álbum segue com “Paula e Bebeto”, cuja composição é de Caetano e Milton Nascimento. A dupla é de Criolo (que firmou parcerias recentes com Milton na voz da própria Gal – logo, estamos em família). A música tenta emular a gravação de 1978 com a permanência da mesma levada e a entrada de Criolo não dá a densidade que a música demanda. Ficou aquém da potência dos versos que começam com “qualquer maneira…”. Depois eles partiram por outros assuntos.

Em seguida, começa a melancólica canção de Tom Jobim e Chico Buarque, “Pois É”, que Gal gravara no mesmo álbum de 1978, Água Viva. Gal partilha os microfones com António Zambujo, um português que guarda profunda ligação com a música brasileira e principalmente com Chico Buarque, a quem dedicou um disco inteiro em 2016. A faixa é curta e a voz de Zambujo marca bem o tom de desamor da dor da separação. Acho que a intimidade de António com os versos buarqueanos e seu profundo conhecimento do fado de sua terra natal junto com a já dita maturação de voz de Gal  ajuda a dar a gravidade que a música precisa. O disco segue com uma abertura que todo mundo conhece pois virou tema de novela e hit na voz suave de Gal Costa, “Meu Bem, Meu Mal”, de Caetano vira um palco aberto para Gal mostrar a que veio com sua voz e colocação perfeitas. A gravação clássica do álbum Fantasia de 1981 não deve em nada com a participação solar de Zé Ibarra cantando num registro muito parecido com o da cantora que faz com que ouvidos menos atentos até confundam. E a prolongação das sílabas finais do refrão é o ponto alto da música. Mas Gal já tinha exaltado a coragem dos “garotos” em cantar em tons mais agudos e acompanhá-la.

Logo se emenda com um batuque e uma voz grave que faz arrepiar: Seu Jorge entra cantando “Juventude Transviada” que logo depois é transmutada em lamento com a sua descida perfeita e acompanhamento de uma Gal segura de sua voz que faz relembrar a gravação original de seu disco Gal Tropical de 1979. A composição de Luiz Melodia fica “nos trilhos” com esse dueto apaixonante que termina com a já célebre “uma mulher não deve vacilar”. E ninguém vacilou nessa faixa. Começa então “Baby”, canção símbolo de sua fase tropicalista mais radical, mas que agora é acompanhada por cordas e a voz suave de Tim Bernardes, outro expoente da cena contemporânea. A canção de Caetano fica linda com a gravidade que Tim encara seu refrão. Com subidas e descidas e cantos desencontrados a música cresce e termina muito significativamente crescendo e com a incidental: “baiana”. Eis que chegamos a outro sucesso tropicalista também cantada por um expoente da Nova MPB, Rubel. Gal já tinha dividido microfones cantando Baby, mas agora eles cantam a de Caetano, “Coração Vagabundo”. Música também de seu primeiro álbum, Domingo de 1967 e pode-se dizer que fora seu primeiro sucesso. Rubel mantém a leveza que deu o toque da canção original. Não há novidades, tanto nas vozes colocadas e mesmo na maior gravidade no fim, o arranjo é parecido.

Chegamos a parte final do disco com um estrangeiro cantando uma versão de Caetano Veloso de uma canção de Bob Dylan, “Negro Amor”, que Gal gravou em seu Caras & Bocas, de 1977. O estrangeiro é Jorge Drexler, talvez o mais consolidado nome a fazer dueto com a cantora. A abertura grave e as cordas dão o tom da música que não ganha muitas novidades, além do sotaque simpático, o canto quase falado de Drexler e a já dita segurança de voz que Gal Costa demonstrou mais uma vez. Mesmo o final a espanhol fica submerso na pasmaceira da faixa.Talvez a grande coisa dessa faixa seja mesmo a versão de Caetano Veloso de um Lado B de Dylan. A mesma coisa que fizera com poema de Maiakovski e outras tantas. Espero não forçar a nota em dizer que Caetano Veloso é o grande homenageado neste 32º álbum de Gal Costa. Seja como for, é seu filho Zeca  que encerra lindamente com a canção-título, “Nenhuma Dor”, composta por Caetano e pelo poeta Torquato Neto e gravada por Gal em seu primeiro disco. Zeca já abre a faixa demonstrando suas virtuosidades no tom agudo que lhe rendeu o hit “Todo Homem”. A música aparentemente singela e infantil, é cínica ao forjar o paralelismo (ainda não desgastado) entre a namorada e os brados ufanistas que a Ditadura civil-militar se utilizava. Pois, vindo de Torquato Neto e Caetano Veloso um “salve salve idolatrada” nunca é por acaso.

A faixa encerra em família. Ou quem há de negar que a família Telles Veloso e Penna Burgos não são uma só? Gal Costa faz um disco-tributo a sua própria história sem ser laudatório. Desde a maravilhosa reformulação de sua carreira iniciada em Recanto de 2011, Gal se rejuvenesce a cada álbum sem ficar refém de modismos. Já flertou com o sertanejo universitário em dueto com Marília Mendonça e (não só) agora se volta para a cena mais próxima de si, a da assim chamada Nova MPB. Sigla esta que está intimamente ligada ao nome de Gal e de seus parceiros, sejam os antigos, os novos ou os permanentes. É um disco com faixas razoavelmente sólidas e que forjam um conjunto positivo. Gracinha (como João Gilberto a chamava) é farol para os novos e segurança para os mais velhos. Sem tentar cair no clichê, mas a cada disco de s é preciso estar ainda mais atento e forte.

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