Sobre Cuties, pânico moral, marketing e representação
Em meados de agosto deste ano, um pôster da Netflix para o filme Cuties causou polêmica ao colocar em destaque meninas de 11 anos em poses e roupas sexualmente sugestivas. A revolta foi generalizada e justificável, já que a decisão de anunciar o filme dessa maneira foi inteiramente do canal straming. Compare, por exemplo, o pôster original francês, onde o filme foi distribuído pela Bac Films.
A diferença de tom entre os dois materiais é evidente, e aqueles que já tinham assistido o filme na época, como a atriz Tessa Thompson, que disse, em seu Twitter, estar “desapontada” com o modo que o filme foi vendido nos Estados Unidos. “Eu entendo a reação de todos, mas esse material não representa o filme que eu assisti”. A plataforma de streaming pediu desculpas públicas pelo material e Ted Sarandos, CEO da empresa, ligou pessoalmente para a diretora do filme, Maïmouna Doucouré, que chegou a receber ameaças de morte, para se desculpar pelo ocorrido.
Disappointed to see how it was positioned in terms of marketing. I understand the response of everybody. But it doesn’t speak to the film I saw. https://t.co/L6kmAcJFU1
— Tessa Thompson (@TessaThompson_x) August 20, 2020
Só que o filme já havia se tornado alvo – e vítima – da guerra cultural que volta e meia toma conta das redes sociais, e na data de sua estreia, 10 de setembro, a hashtag “CancelNetflix” chegou aos trending topics brasileiros. Se a discussão antes continha pelo menos uma indignação justificada pelas imagens usadas no marketing, esse novo round continha bem menos sensatez. A tag teve início e foi incitada por figuras da Alt Right americana, como o blogueiro Ian Miles Cheong e Lauren Chen – essa última, proponente da teoria da “Grande Substituição”, que acredita que há uma conspiração para “substituir” a população branca dos EUA. Essas figuras, entre outras, acusam o filme de “defender pedofilia”, se perguntando porque Obama (sim) não condenou o filme ou pediu para que a Netflix o retirasse do catálogo. A intenção, é claro, era criar um pânico moral e acusar a “esquerda” de tolerar pedofilia, uma tática muito recorrente também no Brasil. Tanto que políticos como Eduardo Bolsonaro e Fernando Holiday não tardaram em entrar na onda do #CancelNetflix.
It's strange how Netflix is promoting "Cuties" (a show that sexualizes 11 year old girls) and not a single corporate media reporter has asked Netflix employees Susan Rice or Michelle Obama why they haven't condemned the show.
— Emerald Robinson ✝️ (@EmeraldRobinson) September 10, 2020
Se você ainda acha que não estão tentando normalizar a pedofilia, eu não posso fazer nada por você…
— Eduardo Bolsonaro🇧🇷 (@BolsonaroSP) August 22, 2020
Essas acusações foram copiadas de modo bem acrítico por muitos usuários brasileiros que, com base em cenas fora de contexto, repetiam as acusações de pedofilia e de romantizar a sexualização de crianças. “tá mas pq ninguém tá falando desse filme que foi lançado pela Netflix sexualizando meninas -18 e fazendo apologia a pedofilia???????” se perguntou uma internauta, enquanto outros condenaram a empresa por cancelar séries “importantes” para “fazer” um filme desse.
Longe dessa discussão estava as intenções da autora com a obra ou qualquer espécie de preocupação em realmente ver o filme e discutir sobre suas ideias. O longa de Doucouré, que é seu debute em produções de maior metragem, parte de experiências da própria diretora em uma família polígama e de relatos de meninas coletados ao longo de um ano e meio de pesquisa. Em uma entrevista para o site Shadow & Act, focado em filmes afro, ela disse (em tradução livre):
“Todas as histórias que você vê no filme são baseadas nas histórias que foram contadas para mim e eu percebi que essas meninas estavam aprendendo a construir a si mesmas e sua versão de feminilidade com base no que viam nas redes sociais. Percebi que essas meninas estavam crescendo com uma visão que objetivava as mulheres e que estavam crescendo com essa ideia de uma mulher ser um objeto e o valor e o valor de uma mulher baseando-se no número de curtidas que recebiam.”
Esses aspectos estão claramente representados na obra, que acompanha Aminata (Fathia Youssouf), ou Amy, uma menina senegalesa de 11 anos recém chegada em Paris. De família muçulmana conservadora, Amy está tentando entender seu lugar no mundo, que é transformado pela notícia de que seu pai se casará com uma segunda esposa e pelo contato que ela tem com as titulares “Cuties”, um grupo de meninas na sua escola que usam roupas provocantes e rejeitam a noção de serem crianças. Elas emulam o comportamento que elas vêm nas redes sociais, com a intenção de ganhar uma competição de dança local.
Em certa cena, Amy e uma amiga assistem a uma rotina de dança de um grupo rival, formado por meninas mais velhas, que dançam de maneira extremamente sensual, chegando até mesmo um pouco de nudez. O comentário de Amy? “Elas tem muitos likes” diz a menina, fascinada. Não é à toa que, mais adiante, ela passe a emular esse comportamento nas redes sociais e no mundo real, com roupas e comportamentos cada vez mais adultos. Se em casa a menina observa que a vontade e sentimentos das mulheres é sempre secundária, em outros espaços a protagonista busca se afirmar a partir desses comportamentos. A questão é que, evidentemente, isso gera conflito, tanto dentro da própria, quanto com aqueles ao seu redor.
Cuties é muito mais do que a discussão sobre “pedofilia”, e as cenas utilizadas para criar esse pânico moral correspondem a uma pequena parte de tudo que o longa se propõe a discutir. A conversa sobre como há uma ideia de representar essas situações é válida e debates do tipo são constantes na história do cinema. Nos anos 60, por exemplo, o crítico e diretor Jacques Rivette condenou o filme Kapo, de Gillo Pentecorvo, pelo modo como Gillo filmou e enquadrou a morte de uma personagem, e o “Travelling de Kapo” ganhou certa infâmia, sendo o principal exemplo sobre a dificuldade de representar situações difíceis de modo responsável.
O filme de Doucoré navega um território dificílimo, e nem sempre sucede nas suas críticas. Se em algumas cenas de dança é evidente que o problema é maior do que as meninas se mexendo, diante do modo como elas são observadas por adultos que deveriam proteger essas crianças, em outras, elas adotam uma linguagem mais voltada para clipes de música, e acabam mais emulando aquilo que querem criticar. Mas não há dúvida de que a produção entende essas personagens como crianças brincando de serem adultos, e a discussão sobre como isso é representado deve ser feita com a obra, e não como ferramenta para apagar a voz de uma autora. É algo que precisa ser realizado de maneira honesta, não incitado por figuras que sempre agem de má fé, contaminando o debate e colocando em risco a voz de uma nova diretora.