Vidro é o suprassumo sobre filmes de herói

O cinema do indiano M. Night Shyamalan é baseado em dois quesitos principais: a encenação e o debate sobre a fé. Enquanto o primeiro busca uma relação constante entre o mundo real e o fantástico, a mentira e a verdade, o segundo traz um debate sobre como interpretamos a própria fé e na sua crença na contemporaneidade. Em Corpo Fechado, longa que abre uma trilogia, o segundo ponto acaba sendo o mais importante. Um entendimento sobre o conceito e a gênese do herói, além de pensar como esse nunca poderia ser realmente um salvador completo, apenas um humano. Em Fragmentado, há uma dinâmica muito mais voltada para o terror/suspense, se assumindo como gêneros diretos desde a cena inicial. Aqui, o diretor constrói de forma gradativa um crescimento da fantasia nesse universo elaborado. Na conclusão, Vidro é mais uma mistura frontal desses dois elementos. Aqui, o gênero de heróis é importante como uma forma de brincar sobre o próprio, de uma maneira totalmente inesperada.

Na história não temos nada tão heroico. David Dunn (Bruce Willis) cria uma empresa de vigilância, junto com seu filho Joseph (Spencer Treat Clark), como forma de esconder seu trabalho de vigilante do crime. Enquanto isso, Kevin (James McAvoy) ainda se vê perdido em suas 24 personalidades, tendo acorrentado quatro meninas estudantes de uma região. Quando os dois se confrontam, o segundo sob forma de A Besta, a polícia os cerca e eles são presos em um sanatório para estudos da Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson), uma especialista realizando uma pesquisa com seres humanos que acreditam serem super poderosos.

É intrigante a maneira de Shyamalan construir sua narrativa aqui, nunca buscando uma relação climática aos fatos. Por se tratar da conclusão de uma trilogia centrada sobre heróis e vilões, era esperado um ápice épico aqui, que acaba nunca acontecendo. Ainda que isso, inicialmente, pareça algo negativo, todo esse conceito é construído sempre de maneira irônica ao longo da trama. Mr. Glass (Samuel L. Jackson) talvez seja o mais diretamente responsável por isso. Com suas referências a quadrinhos postas desde Corpo Fechado, aqui ele reforça essa ideia de uma HQ climática, de como se desenrolaria, como na sequência em que ele revela onde a batalha final deveria acontecer. Essa precipitação sempre serve de maneira a quebrar com as expectativas, trazendo a obra para um lado muito mais realista que fantástica.

Ao buscar uma abordagem mais direta e sarcástica, a película brinca com as mais diversas referências ao próprio gênero. É um filme totalmente centrado em uma ideia autoconsciente, sabendo entender os problemas e positividades do próprio tema na qual está trabalhando. Se em alguns instantes isso é usado de forma a se tornar uma muleta ao roteiro (como na sua expositividade repetitiva), em outros é feito de forma a tentar entender a efemeridade dos heróis, levantando os debates em cima do conceito deles realmente existirem. Aliás, toda a sequência de conversa da doutora com os três “protagonista”, se é passível dizer isso, é baseada no fato de criar uma intriga sob o público da realidade desses poderes. Para isso, inclusive, o diretor utiliza-se sempre de câmeras do ponto de vista de cada um, buscando um entendimento pessoal que eles poderão ter. O uso sempre do primeiro plano nesse mesmo momento ainda catapulta um debate dos personagens sobre esse pensamento. É um diálogo bem claro de crença do público e das figuras dessa narrativa.

Para apostar ainda mais nessa questão do anticlimax, há uma decupagem bem clara em nunca gerar uma ação direta. Isso já é trabalhado desde a primeira cena de embate, quando M. Night busca uma câmera seguindo a consequência das brigas – como ao seguir a mesa quando A Besta a usa para atacar as garotas, mesmo com David a segurando. Além disso, ele se utiliza sempre de uma steadicam, próxima ao feito por Requiem para um Sonho, de Darren Aronofksy, na fuga do personagem de Marlon Wayans. Essa utilização, feita em todos os momentos de lutas, ainda traz uma sensação da imersão da própria ação, sem entender realmente como ela está acontecendo. Como dito anteriormente, é uma abordagem muito mais procurando a realidade do que um sentido fantástico.

Outro fator utilizado para propriamente brincar em cima das sequências de lutas é o fato dele entender como cada poder desses funciona durante esses ápices. Ao focar em Mr. Glass, por exemplo, ele trabalha os combates no fundo, sempre em segundo plano. Ou até quando busca entender a relação das demais pessoas nesse espaço cênico, como as duas mulheres presas na van. É utilizada uma câmera dentro do veículo para dimensionar os efeitos dos próprios embates, do que como eles acontecem. É um feito quase próximo a um longa de terror, no sentido de a ação e reação serem extremamente importantes, mesmo que não de forma tão demonstrada. Os efeitos são os mais relevantes às cenas.

Vidro é o suprassumo dos filmes de herói. Em uma obra que poderia ser altamente climática no seu tratamento, é feita muito mais a questionar o próprio gênero. Se em Vingadores: Guerra Infinita temos uma trama altamente objetiva na sua ação, aqui temos devidamente o contrário, porém uma forma de complementar como o heroísmo pode ser trabalhado dentro do cinema. Se M. Night Shyamalan já era questionado por muitos devido aos trabalhos anteriores, aqui poderá ser ainda mais. Porém, é impossível saber o que esperar e da maneira na qual ele irá buscar entender suas obras. Com isso, o diretor fala, de forma aberta, que os heróis e vilões podem ser muito mais do que apenas arquétipos ou moralistas. Podem ser humanos.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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