Crítica – Três Buracos (HQ)
Shiko tem ganhado seu nome dentro da produção quadrinística nacional. Fez Azul Indiferente do Céu e foi aclamado; fez Lavagem e foi aclamado; fez Piteco: Ingá, da Graphic MSP, e foi aclamado. A chega de mais uma história sua é basicamente uma crença que realmente será um grande trabalho. Os seus fãs já esperam isso e, mais do que tudo, a crítica e jornalistas já esperam isso. Ele se transformou em uma figura gigantesca, de extremo destaque e influência. Por isso, a expectativa para Três Buracos já era bem grande. E bom, o autor simplesmente atendeu elas e as transbordou com louvor.
Aqui, sua história vai para um caminho menos urbano. Ele foca em contar uma história do interior brasileiro na qual, com muita coincidência, sai em um período bem próximo de Bacurau. A busca por esse pano de fundo é o início para a trama de Tânia, uma mulher que cresceu com o graimpo, a pequena cidade, o puteiro e as mortes rondando sua volta. Seu pai, certo dia, descobriu a “maior turmalina que já brilhou o mundo”, porém teve de esconder a pedra e acabou morrendo por isso. Anos se passam e Canhoto, seu irmão, retorna para a cidade em busca da pedra que a irmã ainda busca. Eles dois e a jovem Cleonice se juntam para armar um plano e conseguir riqueza e liberdade.
É interessante como Shiko cria sua narrativa gráfica em uma intensa mistura. Seja pelos traços de nanquim, seja pelo pincel ou até o digital, ele constrói um universo bastante particular apenas através dos desenhos. A sequência de abertura, mostrando todo o passado do pai, já denota bem isso, com todos os pequenos elementos na qual irão aparecer continuamente sendo implantados. O artista busca trabalhar, assim, já uma realidade social pobre, tipicamente brasileira. Nesse preceito, uma espécie de microcosmo brasileiro, diversas problemáticas conjunturais – presentes também em suas outras obras – aparecem, como machismo, miséria, escravidão, violência e mais.
Nesse sentido, existe um preceito claramente social em Três Buracos. Não existe nenhum medo ou receio de fazer isso, fato na qual pode ser até observado pela capa, aonde o buraco cavado por Tânia parece um pulmão humano. Pulmão esse que respira, como todos nós, e sofre como todos naquela localidade. A aparição do irmão ainda desperta outras situações internas e são bem desenvolvidas como uma realidade paralela. Para trazer isso, as referências visuais de filmes de faroeste ficam mais claras, quando embates são traçados e esse passado gera uma desculpa para isso. Remete bem claramente a algo feito por John Wayne, por exemplo, na dicotomia de bem e mal.
Apesar disso, o artista vai ainda mais além. Suas relações visuais parecem bem claramente ter essa questão cinematográfica quase intrínseca a narrativa, gerando a construção de uma terceira imagem na cabeça do leitor – algo bem aspectual da montagem de Serguei Einsenstein. Contudo, essa imagem não é necessariamente relacionada a um lado político ou até uma metáfora implícita. Isso pode vir simplesmente a ser uma brutalidade tão pura nos acontecimentos e em cada situação nova que acabam por trazer quase um soco para a audiência. Impossível também não evocar David Lynch e seu lado surrealista presentes nas cobras ou na complexidade trabalhada dentro do buraco principal de garimpo.
Shiko trabalha a iconografia sem limites aqui. Nessa história, a busca dele parece sobre algo extramemente mais complexo, sobre a morte inerente e a violência quase primata humana. Os Três Buracos do título representam bem essas questões, sempre relacionadas a alguma violência, seja ela pela cansaço, pela violência sexual ou, obviamente, pela morte. Nessa dinâmica podemos não nos acostumar, todavia somos colocados em um universo na qual renega qualquer senso moral próprio. O objetivo da HQ não é possuir isso como primordial, mas saber usar o horror para falar sobre a realidade. E, com isso, é perfeito. Com isso, o autor demonstra que, com uma história de quadrinhos, sabe bem como fazer um filme de horror.