Crítica – Bela Vingança
O gênero rape revenge (vingança de estupro) sempre foi associado ao lado mais B ou trash do cinema, com o ponto de partida mais evidente sendo o longa A Vingança de Jennifer, ao final dos anos 70. Nele, uma mulher, após um terrivel ato de violência sexual, sobrevive e parte em busca de vingança. Há variações dentro disso, é claro, às vezes o ato não é executado pela própria mulher, mas sim por familiares. O que sempre é o mesmo é a violência extrema dessa vingança, fato que acabou deixando os filmes desse teor um tanto afastados do mainstream, embora esforços recentes tenham mudado a percepção dos filmes do tipo. Um dos casos foi o filme francês Vingança, de 2017, e agora o Bela Vingança, que recebeu cinco indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção.
No longa, a protagonista é Cassie (Carey Mulligan), uma mulher de 30 anos cuja a vida parou após largar a faculdade de medicina depois de uma tragédia envolvendo sua amiga de infância. Cassie mora com os pais, não tem amigos e trabalha em uma cafeteria, sem muita perspectiva de futuro, para o desespero da sua mãe (Jennifer Coolidge). Mas a protagonista leva uma vida dupla: de noite, ela frequenta festas, e assume um comportamento mais fragilizado, esperando que algum homem ofereça “ajuda”, e antes que o abuso vá longe demais, ela o pune pelo ato. Quando a oportunidade de se vingar daqueles que levaram sua amiga ao suicidio surge, Cassie não a deixa passar. Enquanto isso, a possibilidade de uma vida mais normal também se apresenta, na forma de Ryan (Bo Burnham), um antigo colega da faculdade.
Emerald Fennell, a diretora e roteirista do longa, abre mão do aspecto mais gráfico ligado a esse tipo de história. Não há violência extrema em Bela Vingança. Aqui os atos de Cassie atingem mais o emocional e o psicológico de suas vítimas. E é nesse ponto que os problemas do filme começam, já que o modo que a protagonista opera é o seguinte: ela se finge de bebâda, até que algum homem se ofereça para ajudá-la, a leve para casa dele e se aproveite do estado aparentemente entorpecido dela, que então revela estar sóbria e… tem uma conversa muito séria com o homem em questão, em tom de ameaça – mas somente isso.
O longa até brinca um pouco com essa questão da violência. Após o primeiro “encontro”, vemos a protagonista andando pela rua com a roupa manchada de vermelho, que é na verdade o recheio de um doce. Esse quesito pode até funcionar como uma boa metáfora para a própria produção, cujo trabalho de marketing apontava um trabalho muito mais sombrio do que de fato é, sendo algo mais “açucarado” do que aparenta ser. Mas ao trocar a violência por essa postura mais “engraçadinha”, o longa é castrado de potencial, já que para o truque de Cassie funcionar, temas mais sérios precisam aparecer de um modo um tanto descomplicado.
Não que as obras de rape revenge sejam exatamente um poço de discussões complexas sobre misoginia, mas Bela Vingança não busca tanto esse apelo visceral, e sim apontar um olhar para as estruturas que permitem que mulheres tenham suas vidas tolhidas, enquanto os perpetradores disso saem ilesos. A questão é que o filme quer ter essa discussão em um mundo constituído largamente por caricaturas – a exemplo da cena em que a “vítima” da vez é um personagem interpretado por Christopher Mintz-Plasse, que é basicamente o “boy lixo” alternativo que é o foco de tantos memes pela internet, apaixonado pelos livros de David Foster Wallace e que deseja escrever um livro sobre como é ser “um homem no mundo”.
Essa descomplicação da narrativa se estende a também aos atos da própria protagonista, que, por mais incrível que pareça, oferece um tratamento muitíssimo mais cruel as mulheres envolvidas na morte de sua amiga do que aos homens. As duas são ameaçadas com a possibilidade de estupro, fazendo que uma delas até mesmo acredite ter sido estuprada, mas em nenhum momento Cassie é colocada como uma pessoa que pode ter ido longe demais, mas é tratada como nada menos que angelical pelo longa. É particularmente bizarro que o advogado que manchou a imagem da amiga da protagonista, fazendo que ela abandonasse o julgamento contra seus assediadores, receba o seu perdão.
Não surpreende que os melhores momentos de Bela Vingança seja os que existam fora desse assunto, como o romance entre Cassie e Ryan, que é genuinamente interessante de se acompanhar, especialmente por ser um meio de oferecer uma bem vinda complexidade a protagonista para além dos seus atos vingativos. Ela vai em buscar de tentar reaprender a se relacionar com o sexo oposto após os eventos traumáticos pelo qual sua amiga passou.
Ao fim, Bela Vingança acaba se sabotando justamente pela necessidade de ser aceito pelo mainstream, se tornando mais palatável, mas acaba gerando certas incongruências. A mais flagrante? Ao final de tudo, quem salva o dia é a polícia. Ou seja, é um filme que entende tão bem o que deseja criticar, mas que sabe muito bem onde não pisar para evitar rejeição.