A história e a importância da ANCINE
Na curta história da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), talvez este seja o momento de maior risco da instituição. Prestes a fazer 18 anos, o atual presidente Jair Bolsonaro fez a seguinte declaração no dia 19 de julho: “Vai ter um filtro sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”. A frase causou preocupação no meio artístico, já que o fim do órgão pode prejudicar o jovem cenário do cinema brasileiro, mas alegrou a alguns, na qual acreditam que o Estado não deva se meter nesses assuntos, deixando o incentivo à cultura nas mãos da iniciativa privada.
Para entender um pouco da importância da existência da ANCINE e da necessidade de incentivo estatal para o cinema nacional, é necessário olhar para o cenário anos antes da criação da agência. Mais especificamente, é preciso ver o que houve durante a Era Collor.
No início dos anos 90, o cinema brasileiro se encontrava estagnado com o declínio da Embrafilme e o público pouco ligava para as grandes telas, já que naquele momento a televisão estava com força total. A Globo, com suas enormemente populares novelas, atraia boa parte dos olhares da audiência e das receitas publicitárias. A crise econômica dos anos anteriores, somada ao alto preço dos ingressos, fez com que o público aos poucos se afastasse das salas de cinema. Ainda se produziam filmes no final dos anos 80. O ano de 1988, por exemplo, contou com 90 produções mesmo que pornográficos em sua maioria, como aponta esta tabela no artigo“ A crise dos anos 1980 e a exibição cinematográfica”, da professora Anita Simis, que pode ser lido integralmente aqui:
Assim, quando Collor chegou ao poder, o audiovisual brasileiro já se encontrava bem degradado, por isso, quando foi anunciado o fim da Embrafilme e de qualquer espécie de ajuda governamental ao cinema brasileiro, poucas vozes se levantaram contra a medida. Laurent Desbois, em Odisséia do Cinema Brasileiro, escreve:
“O mundo cinematográfico não reage imediatamente à medida, inconsciente de suas consequências. As guerras intestinas da Embrafilme, a impopularidade nascente e crescente de um cinema poluído pela pornochanchada, a total indiferença de um público fascinado pela televisão, a teledramaturgia de alto rendimento em suas reportagens e folhetins intermináveis, o retorno com força de um cinema americano de grande espetáculo e efeitos especiais, todos são auspícios favoráveis para o fim da produção, em meio a uma indiferença generalizada. Nem mesmo o pessoal de cinema protestou quando do anúncio da extinção da Embrafilme. Num texto publicado no início de 1993 (Cinema brasileiro em ritmo de indústria), Mello de Souza escreve que se “aceitou sem muita discussão a supressão da Embrafilme e o fim do nacionalismo protetor. Collor não inventou nada. Ele apenas respondia à expectativa de Hector Babenco, Sylvio Back, Carlos Reichenbach, Chico Botelho, Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos, e da crítica da imprensa liberal”.
O golpe á produção cinematográfica foi grande, e o cinema nacional virtualmente acabou durante o governo Collor. Em 1992, último ano desse presidente no poder, apenas um filme chegou aos cinemas, A Grande Arte, de Walter Salles.
Com a queda de Collor, Itamar Franco assume e promulga, em 1993, a Lei do Audiovisual, na qual concede incentivos fiscais a pessoas físicas ou jurídicas que investem em produções audiovisuais. Através dela que teve início o chamado Cinema de Retomada, que teve como ponto alto o filme Carlota Joaquina, dirigido por Carla Carmurati e lançado em 1995, que foi o primeiro longa dos anos 90 a alcançar 1 milhão de espectadores. O sucessor de Itamar, Fernando Henrique, foi o responsável pela criação da atual ANCINE, em 6 de setembro de 2001. Desde então, a quantidade de produções brasileiras que chegaram às telas tem aumentado consideravelmente, chegando ao número recorde de 143 filmes em 2016. No último ano foram 185 filmes.
Atualmente, o cinema brasileiro se encontra em uma posição muito mais forte do que no período prévio ao fim da Embrafilme, o que não significa que o fim da ANCINE não possa trazer impactos graves as produções nacionais, já que muitas dependem da infraestrutura de financiamento fornecida pelo órgão. Leonardo Edde, produtor executivo de Tropa de Elite 2 e professor da Academia Internacional de Cinema, disse para o Correio Braziliense que acabar com a Ancine “Seria como extinguir a produção nacional — isso serviria a quê, a uma ideologia comercial? É temerário desestruturar uma agência de Estado, embaralhar o setor. Ainda mais numa indústria jovem como a nossa: você desestrutura regulação, fiscalização e o fomento de todo um organismo institucional. Nossas conquistas, nos últimos 20 anos, vêm pelo aprimoramento da regulação”. O fim da agência não afetaria somente o cinema, mas todas as produções audiovisuais, incluindo séries como Irmão do Jorel e Sob Pressão.
A ANCINE está longe de ser um órgão perfeito, tanto que em 2012, 200 cineastas assinaram um manifesto criticando sua burocracia, que acaba desincentivando produtores menores ou independentes de buscarem apoio.com a instituição.
Assim, a história mostra: Já tivemos um período em que o cinema brasileiro ficou sem apoio governamental, o que resultou na sua virtual extinção. Repetir a dose não é sensato. A ANCINE tem muito o que melhorar, e para isso, é necessário ver o cinema não como um simples gasto, mas sim como algo que transmite a nossa cultura e também como investimento. O cinema brasileiro tem se mostrado ano após ano incrivelmente diverso e rico, e a ANCINE é parte importante disso.