A política, música e cinema de Sérgio Ricardo: biografia de um país

Morreu, aos 88 anos, o músico, cineasta, cantor, João Lufti, que passaria para a cultura nacional como o cantor Sérgio Ricardo. A obra dele é vasta e foi marcada pelas disputas ideológicas e formais que marcaram as artes brasileiras no pós-guerra.

Sua carreira teve um salto importante quando seu samba canção “Bouquet de Isabel” foi gravado por Maysa em seu Convite para Ouvir Maysa Nº2, de 1958. Logo depois disso, apresentado por Miele, se envolveu com o grupo da Bossa Nova e lançou, em 1960, seu LP A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo. O artista, então, acabou sendo pioneiro tanto na composição de músicas com o estilo bossa nova, quanto na produção de músicas engajadas, como a “Zelão”, que tornou-se seu maior sucesso e foi regravada inúmeras vezes.

Sérgio Ricardo esteve sempre na ponta de lança do tão almejado “passo seguinte” da cultura brasileira. Participante de primeira hora do gênero bossa nova, junto de Carlos Lyra (e Vinicius de Moraes até certa medida), deu o “salto participante” para a música de protesto ou engajada. “Zelão” conta a história das perdas cotidianas e das necessidades coletivas da favela, pois“um pobre ajuda outro pobre até melhorar”.

Após uma curta passagem pela TV e da divulgação de seu segundo LP de bossa nova, o cantor rodou seu primeiro curta metragem, O Menino da Calça Branca. Ganhando prêmios e rodando o mundo com seu filme, Sérgio Ricardo se sintoniza a outro movimento da cultura brasileira: o Cinema Novo. Ele participou ainda, em 1962, do famoso Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall em Nova York.

Conta o anedotário musical que fora João Gilberto que o apresentou ao marxismo. João também, continua o anedotário, cantava “Este Nosso Olhar”, mas logo o deixou de fazer por conta da palavra “veneno”.

De volta ao Brasil, após temporada nos EUA e na Europa grava mais um LP com a Elenco. Logo, porém, se aproxima de Glauber Rocha que o convida para compor – conjuntamente – a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol. A trilha sairia junto com o filme em 1964, ano do golpe militar. Essas canções, com fortes tintas políticas de resistência e revolução (composta em estilo de cordel), foram eternizadas no cinema nacional em dois momentos chaves do longa:

1- Quando há um tiroteio entre o bando de Corisco e Antônio das Mortes e ouve-se a voz de Sérgio Ricardo gritando e repetindo “Se entrega, Corisco!/Eu não me entrego, não!”. É repetitivo mostrar a força política desses versos de resistência no momento em que os movimentos populares se encontravam encurralados (para dizer o mínimo) pelas movimentações golpistas.

2- Depois que Antônio das Mortes mata Corisco e atinge Dadá, Manoel e Rosa (os protagonistas) saem em disparada enquanto Sérgio Ricardo grita “O Sertão vai virar Mar/E o Mar virar Sertão”.

Glosando a profecia de Antônio Conselheiro, Glauber Rocha e Sérgio Ricardo inscrevem o filme na promessa da Revolução e do “dia-que-virá”, que marcariam as produções culturais até meados dos anos 60. Lançou a obra Esse Mundo é meu que conta no elenco com o próprio Sérgio Ricardo, Antônio Pitanga, Ziraldo e Agildo Ribeiro, com montagem de Ruy Guerra e fotografia de Dib Lufti, seu irmão que se tornaria um dos mais importantes fotógrafos do Cinema Novo. A música homônima foi composta por também Sérgio e ficou famosa na voz de Elis Regina. Ainda compôs as músicas em piano para outro filme fundamental para o Cinema Novo, Terra em Transe também de Glauber.

Sua passagem mais famosa, porém, se deu a contragosto. Em 1967, participou do III Festival da Record com a música “Beto Bom de Bola”. Na final foi a sétima música e o apresentador, para dissimular as vaias que já tinham ocorrido nas eliminatórias, disse para prestarem atenção no novo arranjo da música. Não deu em nada. Mesmo antes de começar a faixa, a plateia já dava as caras. Sérgio, então, tentou o diálogo: “Eu quero que vocês me ouçam um instante. Aqui na plateia há gente inteligente!”. Sem surtir nenhum efeito, emendou “Vocês podem vaiar. Depois desse festival a música vai se chamar ‘Beto Bom de Vaia'”. Foi a deixa para aumentar ainda mais o rebuliço do auditório. Mesmo assim, ele começa a canção com um grito que a marcaria para sempre, não pela sua qualidade, mas pelo evento a seguir. Não havia condições do Quarteto Novo ouví-lo, nem ele ouvir o acompanhamento. Sérgio insiste mais um pouco e canta um trecho antes de se irritar e fala para a plateia: “Vocês ganharam! Vocês ganharam! Mas isso é o Brasil desenvolvido. Vocês são uns animais!”. Dá alguns passos para o lado e visivelmente irritado bate o violão contra um pedestal e o arremessa à plateia.

As vaias, nesse período, eram marcas desses festivais. Elas demonstravam os ânimos acirrados entre as diferentes posições sobre a música (e a política) que se apresentavam no palco. O episódio marcou sua trajetória para sempre, tanto é que em 1991 lançou um livro de memórias cujo título é Quem Quebrou meu Violão. Ele, entretanto, nunca gostou muito de responder sobre isso em entrevistas depois.

Sérgio continuou sua carreira musical e de cineasta. Lançou músicas e artistas novos (os novatos Fagner e João Bosco). Suas músicas cada vez mais censuradas pela ditadura o impedia de circular pelo público. Em 1973, lançou seu LP Calabouço pela Continental. A capa do álbum era o cantor com um tarja branca na boca. Toda sua militância política e pelos direitos dos artistas e compositores o levou para o DOPS para prestar “esclarecimentos”. Em 1974 lançou seu longa A Noite do Espantalho, no qual contava com Alceu Valença e Geraldo Azevedo no elenco.

Ainda nessa mesma década, se mudou para Vidigal e entrou em contato com os moradores e suas lutas contra remoções e melhor qualidade de vida. Nos anos 80, lançou o disco Flicts com músicas para a obra de Ziraldo, emendando em 82 um livro de poesias. Produziu o álbum João Joana com músicas suas para um cordel de Carlos Drummond de Andrade.

Mais recentemente lançou o livro de poemas Canção Calada, com sua produção poética e alguns desenhos e teve sua obra revista pelo projeto Memória Vista. Sua música “Bichos da Noite” fez parte da trilha sonora de Bacurau, fazendo Sérgio Ricardo participar de outro marco no cinema moderno brasileiro. Em 2018, fez seu último trabalho em vida, Bandeira de Retalhos.

Sérgio Ricardo foi mais um grande artista que nos deixou em meio a essa pandemia, que já ceifou milhares de vidas. Ele esteve envolvido em boa parte dos movimentos mais importantes da cultura brasileira da segunda metade do século XX. Apesar, disso sua história sempre é contada a partir do episódio da quebra de seu violão no Festival da Record. A biografia de Sérgio se confunde com a biografia cultural de um país que sonhou em ser livre e mais justo. Que seu grito de resistência continue ainda a ecoar em tantos “Coriscos” espalhados pelo Brasil.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *