Michaela Coel e I May Destroy You: A arte como retrato e confronto da realidade

David Fincher já era um dos diretores mais aclamados de sua geração quando lançou, em 2010, o filme A Rede Social. Antes do lançamento do drama biográfico sobre Mark Zuckerberg e a criação do Facebook, era mais comum encontrar na filmografia do diretor suspenses e thrillers psicológicos, diferentes do drama Benjamin Button. Apesar do sucesso e qualidade inegável de seus outros trabalhos, muitos elegem A Rede Social como sua obra-prima e isso se dá não só pela força das atuações e da tumultuada criação da maior rede social do mundo, mas também por retratar de maneira quase cirúrgica os comportamentos, mazelas e desdobramentos de uma geração que havia acabado de nascer.

É mais ou menos isso que Michaela Coel faz em I May Destroy You.

Nascida em Londres e filha de ganeses, Coel sempre teve múltiplos talentos. Recitava poesia na adolescência, chegou a lançar álbuns musicais influenciados por seu trabalho como poeta, além de se destacar nos diversos programas de teatro que participou durante a adolescência. Como projeto de conclusão na graduação em teatro, a artista produziu Chewing Gum Dreams, que retratava os desejos e o mundo de uma jovem mulher negra em contraste com uma criação extremamente religiosa. O sucesso da peça foram além do meio acadêmico, lotando teatros pela Inglaterra, até ser transformado em uma comédia para o Channel 4. Quando a série foi distribuída pela Netflix, em 2016, não demorou para que Michaela e as discussões que a produção trazia de maneira bem-humorada ganhassem popularidade na internet e fora dela também. Resultado: a atriz ganhou 2 BAFTAS e a série foi indicada a Melhor Roteiro de Comédia.

Nos bastidores, no entanto, a situação não andava tão boa. A produção e a emissora não tinham uma boa relação com Coel e outros membros do elenco, envolvendo até mesmo atitudes racistas. Além disso, foi durante a produção que a criadora sofreu abuso sexual. O relato ocorreu durante a James MacTaggart Memorial Lecture, do The Edinburgh International Television Festival. Uma noite, enquanto escrevia o roteiro no escritório da produtora, a atriz fez uma pausa e saiu para encontrar um amigo. No dia seguinte, ela estava lá novamente, mas não sabia como havia chegado ali. Somente depois ela se lembrou de ter sido atacada por homens que não conhecia. Ela relatou também como a produtora lidou com o caso, “caminhando uma linha tênue entre saber o que é empatia humana e não saber o que é empatia de uma maneira geral”. Anteriormente, Michaela foi assediada por um produtor durante um prêmio e ficou tão chocada que abandonou o evento abruptamente, deixando seu convidado para trás. O mesmo produtor usou termos racistas com o rapaz. Isso tudo serviu de base para I May Destroy You.

Uma co-produção entre a BBC One e a HBO, a série se passa em Londres e segue Arabella Assiedu, uma escritora cujo primeiro livro foi um sucesso de público e campeão de vendas, o best-seller “Chronicles of a Fed-Up Millenial” (Crônicas de um millenial de saco cheio, em tradução livre). É durante o processo de escrita de seu aguardado segundo romance que encontramos a mulher, que, apesar do prazo de entrega apertado, resolve dar uma pausa e encontrar alguns amigos para um drinque. Na manhã seguinte, Arabella precisa lidar com as consequências do que aconteceu na noite anterior e como isso afetará o modo como ela lida com a vida, o trabalho e os amigos depois disso.

Há muito a se dizer sobre esta série e sobre sua criadora. O final do primeiro episódio deixa o espectador no mesmo lugar da protagonista: assustado, preocupado e confuso. Ao contrário do que é geralmente associado com o tema central, a narrativa e o roteiro não se firmam muito no drama, dando um fôlego para a produção – muito necessário na televisão atualmente. O texto de Coel traz questionamentos sobre estupro e consentimento de uma maneira extremamente orgânica, com uma leveza que não permite a diminuição o peso das situações atravessadas pelos personagens. E isso exatamente por ser algo que atinge tantas pessoas todos os dias.

É notável também a forma como essa premissa inicial é também um convite para uma reflexão maior. Enquanto acompanhamos a investigação de Arabella sobre o que aconteceu e como isso muda seus comportamentos, há todo um universo e uma galeria de personagens que enfrentam desafios parecidos, como o assédio sexual entre homens, uso consentido de camisinha e relações com mais de duas pessoas. A intenção é colocar em discussão todas as formas de abuso sexual e como isso afeta as vítimas (e também os agressores), o limite do consentimento, e como é um assunto ainda cercado de receios e tabus, não por sua gravidade, mas por ser varrido para debaixo do tapete.

A internet é quase um personagem próprio dentro da história, manifestando de forma realista o papel que essa representa na vida de qualquer pessoa em 2020. As redes sociais podem ser perigosas, mas também podem ser uma alternativa muito necessária à solidão em momentos difíceis. A produção mostra como é necessário lembrar que nem todo mundo sabe as mesmas coisas que você, por mais óbvias que elas pareçam, e o mundo online é uma fonte inesgotável de informações que podem ajudar as pessoas a compreender suas próprias experiências ao compartilhá-las com os outros.

Reconhecer a coragem do seriado em sua essência ajuda a compreender também porque é tão fácil que ele seja ousado também em outros aspectos. Como o desenvolvimento de personagens, reais e desconfortáveis em seus erros e inconsistências, assim como em suas qualidades e destaques. Essa estrutura, que deixa os episódios ágeis e interessantes com diferentes formatos sem que isso afete o ritmo, que tem o desconforto e o embaraço como as principais fontes de humor e no meio do caminho os transforma em ferramentas de questionar e confrontar o trauma vivido por essas pessoas. A fotografia de Adam Gillham e a excelente trilha sonora também são pontos fortes.

Para além dos temas em si, a série expõe novamente a revelação que é Michaela Coel como dramaturga e atriz e uma voz mais bem-vinda do que nunca. Através de interpretação ímpar, com uma declaração honesta, sensível e autêntica da realidade de tantas pessoas, Coel evidencia a importância da arte não só como uma expressão de sentimentos, mas também como uma maneira de mudar o mundo, as lembrando que, independente dos que elas tenham enfrentando, não estão sozinhas. Com um título que mais se assemelha a um aviso, I May Destroy You é uma jornada autobiográfica extremamente honesta e sensível, o espelho definitivo da geração atual, tão perdida e ao mesmo tempo tão consciente de si mesma. Esses mesmos seres do séculos XXI lutam para melhorar o mundo, sem fazer ideia de qual caminho seguir para atingir isso.

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