Adoráveis Mulheres: As diferentes versões da obra de Louisa May Alcott
A literatura permite que entremos em diversos universos: mundos gigantes ou pequenos, complexos ou simples, mágicos e sombrios. E embora o sucesso de obras fantásticas como O Mágico de Oz, O Senhor dos Anéis, Frankenstein, Drácula e Harry Potter mostrem como o mundo é adepto ao escapismo para fora da realidade, há outras que são tão puras e humanizadas em seus temas que são imortalizadas exatamente por isso. Um desses trabalhos é o clássico romance Mulherzinhas (Little Women), escrito pela norte americana Louisa May Alcott e publicada em 1868.
Inspirado na vida da própria autora, funcionando quase como uma autobiografia, o livro fala sobre a vida da família March durante a Guerra Civil Americana. Enquanto o patriarca está na guerra, a resignada Marmee luta para sustentar as quatro filhas: Meg, a mais velha; a impulsiva Jo; a orgulhosa e vaidosa Amy e a caçula Beth. Embora as irmãs sejam muito diferentes entre si e vez ou outra tenham suas desavenças, elas ainda assim precisam se apoiar e se manter unidas enquanto crescem e descobrem suas identidades em meio a mundo que não pára de mudar. Cerceado por temas que muito agradam o povo americano, como o patriotismo, os valores da família, a dedicação ao lar e o deveres civis, não é surpresa que o romance de Alcott seja celebrado como um dos maiores títulos da literatura estadunidense.
O sucesso da história foi instantâneo, tanto que o editor de Alcott logo encomendou uma sequência, chamada de “Good Wives” (Boas Esposas). Em 1880, essa sequência passou a ser incorporada ao trabalho original e o romance passou a ser publicado contendo os dois livros, divididos em partes. A popularidade dos personagens era tremenda, todos queriam saber quais seriam os destinos não só das irmãs March, mas também de seu vizinho Laurie, a mãe Marmee, entre outros. Não demoraria muito para que a história dessa típica família norte-americana saísse das páginas dos livros e ganhasse outros espaços e novos fãs.
Nos palcos
Um dos elementos que mais se destacam na obra é a paixão da protagonista Jo March pelo mundo das artes, particularmente o das palavras. Ao longo da narrativa, ela escreve pequenas contos e peças para encenar com suas irmãs e busca construir uma carreira literária. Uma das primeiras adaptações de Mulherzinhas fora das páginas foi nos palcos do teatro, em uma adaptação da dramaturga Marian de Forest encenada na Broadway em 1912. Inúmeras adaptações ganharam peças desde então, na Broadway, West End e outros diversos renomados locais e diretores trazendo a história das March à vida.
Isabella Rusell-Ides é quem talvez tenha entregue uma versão mais diferenciada com JO & LOUISA, promovendo o encontro entre a autora e sua amada personagem, onde Jo confronta sua “mãe” sobre assuntos como gêneroe transformações, desejando que a autora a reescreva.
Cinema mudo e a Grande Depressão
Considerando a popularidade e quanto tempo ele faz parte do imaginário popular, é quase surpreendente que o filme tenha apenas cinco adaptações oficiais, com as sequências dos livros Little Men e Jo’s Boys raramente sendo adaptadas. A primeira versão para o cinema foi um filme britânico mudo, dirigido por Alexander Butler e lançado em 1917. A produção estrelou Ruby Miller como Jo March, mas é considerado um filme perdido.
Apenas um depois era lançada outra versão muda, dessa vez de produção americana e dirigida por Harley Knoles. A duração é de apenas 60 minutos e o elenco das irmãs March era composto por atrizes cujo maior crédito é sua participação nesta fita. Quem mais se destaca aqui é Conrad Nagel como Laurie: Nagel veio a se tornar um grande nome para o cinema durante as décadas de 1930 e 1940, chegando até mesmo a ganhar um Oscar Honorário em 1940 e três estrelas na calçada da fama. Multifacetado, o ator interpretava nas telas, nos palcos, na televisão e nos rádios.
George Cuckor, o célebre diretor que esteve por trás de muitos grandes filmes dos anos 1930 e 1940 através da produtora RKO Pictures, trouxe em 1933 a primeira adaptação do livro com som. No elenco, apenas estrelas da época: Katharine Hepburn, Joan Bennett, Frances Dee e Jean Parker. Foi a maior bilheteria doméstica de 1933, arrecadando 1,3 milhão de dólares. A discussão sobre o sucesso do filme geralmente invoca os anseios da população estadunidense pós-Crise de 29. Os temas de sobreviver em tempos de dificuldade e os valores da família acima de tudo ressoaram com a audiência conservadora e o público do longa foi enorme. Um ano depois, era lançada a adaptação da primeira sequência, Little Men.
Filmes coloridos e mulheres na direção
Em 1949, estreava uma quarta versão, que se utilizava dos mesmos roteiros e trilha sonora que o longa de George Cuckor. O grande diferença estava no uso de Technicolor, os primeiros processos de colorização das películas. Aqui, as irmãs Jo, Amy, Beth e Meg são interpretadas respectivamente por June Allyson, Elizabeth Taylor, Margaret O’Brien e Janet Leigh. Há algumas diferenças marcantes nessas versões, como a ideia de trazer Beth como a irmã mais nova das quatro, enquanto no livro e nas outras versões ela é um ano mais velha que a caçula Amy. Embora tenha seus créditos, é possivelmente a mais esquecida da longa série de adaptações dos livros de Alcott. Os principais motivos citados são as divergências do material original e uma interpretação apenas competente de June Allyson, muito comparada à elogiadíssima atuação de Katharine Hepburn em 1933.
Na década de 1990, as coisas já eram bem diferentes. As histórias sobre mulheres e para mulheres já não seguiam aquele mesmo formato da Era de Ouro de Hollywood já há algum tempo, enquanto contos violentos e realistas como Um Sonho de Liberdade, Pulp Fiction e O Profissional encantavam os estúdios, as audiências e as bilheterias. Ao mesmo tempo, uma das maiores estrelas da época era Winona Ryder. Após participações pontuais em alguns filmes juvenis em meio anos 1980 e atingir o sucesso e o estrelato com Heathers, Os Fantasmas se divertem e Edward Mãos de Tesoura, Ryder era a atriz do momento, trabalhando com diretores do escalão de Martin Scorsese e ganhando indicações a diversos prêmios. Tudo isso permitia que a atriz não só escolhesse melhor quais produções iria estrelar, como também um envolvimento maior em todo o desenvolvimento dos longas.
Com roteiro de Robin Swicord, uma nova refilmagem de Mulherzinhas estava batendo na porta dos estúdios em busca de financiamento há mais de dez anos. Foi apenas quando Ryder topou participar que o projeto foi pra frente. Com direção de Gillian Armstrong, Adoráveis Mulheres se destaca por representar perfeitamente a década em que foi feito. O primeiro papel de Claire Danes no cinema foi Beth March, Kirsten Dunst se destacou em premiações por sua interpretação como Amy (e também por sua participação em Entrevista com o Vampiro) e Winona acabaria sendo indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua Jo. O filme também foi um sucesso de bilheteria e extremamente rentável, arrecadando 95 milhões de dólares com um orçamento de 18 milhões. Ainda assim, mesmo com todos os triunfos, Swicord disse ao New York Times: “Eu queria que Adoráveis Mulheres tivesse causado mais impacto do que causou. Os estúdios consideram [o sucesso] como algo fora do normal. “Amigas para sempre”, “Flores de aço”, “Uma linda mulher”, quantas vezes esses filmes precisam fazer sucesso para as pessoas entendam que eles tem uma audiência?”.
Devido ao sucesso, o reconhecimento e o brilhante elenco, por muito tempo o filme de Armstrong foi considerado a adaptação definitiva do romance original. Ainda assim, outras versões vieram. Em 2017, a BBC lançou um novo capítulo em forma de minissérie, adaptada por Heidi Thomas, criadora de Call the Midwife. Com três episódios de uma hora de duração, a produção conta com grandes nomes da dramaturgia inglesa, como Emily Watson e Michael Gambon. Angela Lansbury interpretou a austera Tia March e o papel de Jo ficou com Maya Hawke, a filha de Uma Thurman e Ethan Hawke que ganhou muito destaque em 2019 com sua participação em Stranger Things. Vanessa Caswill dirigiu todos os três episódios. Embora não tenha sido muito popular, a produção recebeu boas críticas da mídia especializada, ressaltando o valor da produção técnica, boas atuações e a fidelidade ao material original.
Em outubro de 2013, as produtoras da versão de 1994, Robin Swicord, Denise DiNovi e Amy Pascal já levantavam novas conversas sobre trazer as irmãs March de volta aos cinemas. Olivia Milch e Sarah Polley estiveram envolvidas em algum momento para escrever e dirigir. Porém, foi somente em 2016 que Greta Gerwig foi contratada para roteirizar o projeto. Com o sucesso de sua estreia na direção com Lady Bird em 2017, alçando Gerwig ao status de A-List, ela logo foi confirmada como diretora.
Ainda que seja uma das narrativas mais clássicas em temas e jornadas de personagens, Gerwig sentia que apenas recontar Mulherzinhas não seria o bastante. Em entrevista ao New York Times, a diretora diz que não buscava atualizar a história, mas entendê-lo e entender sua época e seus personagens. A missão de Gerwig não era trazer ideias feministas ou modernas para este clássico familiar, mas ressaltar os pontos da história original onde isso já estava claro. O livro de Alcott estava a frente de seu tempo.
Estreando no final de 2019, com nomes gigantes no elenco como Saoirse Ronan, Meryl Strep, Laura Dern, Timothee Chalamet, Florence Pugh, Emma Watson, Chris Cooper, Bob Odenkirk e Louis Garrel, a adaptação de Gerwig já é considerada uma das melhores versões (se não a adaptação definitiva) para cinema da história, sendo indicada a diversos prêmios e listado como um dos melhores filmes do ano. O roteiro se destaca por evitar a fórmula utilizada tantas vezes, e inova ao utilizar uma narrativa não linear para contar a história. Não só o torna mais dinâmico, mas também traz um frescor necessário à trama. Além disso, Gerwig reconhece as limitações sociais de um drama de época e consegue fazer isso se mantendo atual e coerente com o público moderno.
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