Amor Até as Cinzas e os conflitos amorosos na China contemporânea
Pessoas sentadas olhando para frente. O barulho quase destruidor de um ônibus velho. No meio disso, encontra-se a jovem Qiao (Tao Zhao). Ela, diferente da passividade do resto, parece possuir pensamentos positivos sobre aquilo tudo. Há uma certa nostalgia presente no ar, solidificada pela cor mais chapada da fotografia de Eric Gautier. Sendo possível solidificar algo no meio dessas questões, é que Amor Até as Cinzas retrata sobre o passado e o presente. O passado recente, do início dos anos 2000, na qual o feudal era padrão na China e a protagonista vivia o auge de seu amor com o mafioso Bin (Fan Liao). Presente sobre a tecnologia e a ocidentalização da região, além de uma nova busca por esse seu amor.
A encenação do diretor Jia Zhangke é trabalhada dentro dessa consolidação do ambiente. Seus planos, quase sempre uma mistura entre longos e sequência, abordam quase um cinema de ação e reação. A ação sempre proposta pelo casal de protagonistas, emergidos dentro da violência (algo apresentado já com Qiago dando socos logo nos primórdios). Já a reação, muito mais pensada nessa resposta para os atos violentos por si só. Sua decupagem, inclusive, gratifica isso, ao buscar, por exemplo, uma ida e volta da câmera nos diálogos.
Ambientando nessa concepção de universo bastante particular, é intrigante como Zhangke demonstra as pequenas interligações entre a chegada do ocidente e essa potencialização violenta. A grande sequência de maior violência gráfica, inclusive, remete a filmes de ação feitos por Hong Kong, como Police Story – A Guerra das Drogas e Operação Dragão. Mesmo assim, a utilização de espaço marcado por prédios e pessoas, traz quase uma ideia de longas produzidos na Nova Hollywood, principalmente de Martin Scorsese. A importância desses elementos é a sua correlação do relacionamento amoroso, gerado na base de uma agressividade, mas totalmente amigável e afável.
Essa associação para com o ocidente é demonstrada em pequenas cenas ao longo da película, mas fazem parte quase de maneira intrínseca à formalização do ambiente pela direção de arte de Weixin Liu. O pôster de O Resgate do Soldado Ryan, a dança de “YMCA” e as câmeras de vigilância. Tudo isso, na qual faz parte do presente, pensa, do mesmo modo, o antigo, remontando principalmente pelo ônibus e pela vastidão de montanhas, aonde a sequência do treinamento de tiro remonta tudo.
Quando se aprofunda no amor entre os dois, a obra consegue extrair um elemento quase primordial sobre essa conexão de tempo. É uma forma de se aprofundar dentro de um pensamento de uma união quase advinda do clássico, próximo ao feito em Amor à Flor da Pele. Porém, a ligação entre eles é quase impossível de acontecer, seja pelo fato da inocência da mulher ou pela força bruta do homem. Eles, acima de tudo, sentem uma necessidade desse romance acontecer, mas não parecem o saber bem porquê. E isso se torna, também, um dos grandes acertos aqui, ao simplesmente trazer isso em um pensamento bem mais psicológico do público do que propriamente nos diálogos.
O apogeu disso tudo se torna o desfecho. Nem um pouco catártico, nem um pouco grandioso. Ele demonstra uma clara nova formalização urbana da China, espaçosa e vigilante. Mas, Qiao é totalmente ao contrário, se sentindo oprimida dentro desse novo âmbito social da região. Se a vastidão de campos – na cena anterior – mostra uma liberdade, agora ela está totalmente fechada, enquadrada sob uma porta e também vigiada por uma câmera. Parece não se sentir mais em seu lugar, sem entender muito bem para onde ir. Um paralelo bem claro se forma na sequência da utilização da arma, onde ela se demonstrava poderosa mesmo em um lugar violento. Agora, sob segurança, ela se sente submissa.
Amor Até as Cinzas é um filme bastante interessado em entender a nova fragmentação da sociedade chinesa. No meio dessa questão, ele investiga uma história de amor, pautada pela violência e julgamento dentro desse novo meio. Se os personagens, no início, se viam livres a tudo, inclusive a exercer seu relacionamento, agora são julgados e observados. Jia Zhangke realiza muito mais uma observação sociológica. Se a arte busca entender o momento em que estamos, talvez Zhangke seja um investigador no meio desse ponto.