As Viúvas consegue ir além de um “heist movie”
A breve filmografia do britânico Steve McQueen pode surpreender aos desavisados. Os conhecedores e amantes da sétima arte certamente conhecem seu nome, ainda que sejam familiares com suas películas. Comandante de apenas quatro filmes, é possível dizer que a força e a identidade impressa em seus projetos foram o suficiente para transformar seu nome em muito mais do que uma promessa, mas um verdadeiro nome de peso em Hollywood.
Após a aclamação universal de seu último longa, 12 anos de escravidão, McQueen iria navegar por terrenos divergentes dos temas abordados em filmes anteriores. Ou será? As Viúvas (Widows) se trata não de um roteiro original, mas de uma adaptação de um seriado de TV britânico escrito por Lynda La Plante. O seriado original, exibido em seis capítulos, foi um marco na adolescência do jovem diretor, que decidiu trazer uma nova roupagem à história e aos personagens com a ajuda de Gillian Flynn (autora e roteirista de Garota Exemplar), adaptando a trama para a Chicago dos dias atuais, em meio à corrupção política e crescentes tensões raciais.
Harry Rawlings (Liam Neeson) é um renomado e conhecido criminoso, que morre durante um assalto, levando consigo três de seus parceiros. Veronica (Viola Davis), sua esposa, ainda se ajustando ao mundo sem seu marido, é então ameaçada pelo criminoso Jamal Manning (Brian Tyree Henry), que precisa reaver os 2 milhões de dólares que Harry roubou dele para financiar uma campanha para vereador do distrito. Com sua vida em risco, Veronica decide buscar apoio das viúvas dos parceiros de seu marido: Alice (Elizabeth Debicki), uma aparentemente frágil e insegura mulher que parece ser cercada de relacionamentos abusivos, e Linda (Michelle Rodriguez), dona de uma loja de roupas que perde tudo após a morte do companheiro. Com a ajuda das duas, Veronica pretende carregar o último roubo que Harry não conseguiu fazer, no valor de 5 milhões de dólares. Dessa maneira, a viúva pode não só quitar sua dívida, mas também dar e a si e ao seu grupo uma chance de fazer a vida voltar ao normal.
Com uma trama simples e bem definida ao longo de toda a projeção, o maior trunfo de As Viúvas é sempre ter algo maior acontecendo por trás de cada acontecimento. Como todo “heist movie”, o grande roubo é a principal atração, mas a construção dos eventos é o que transforma o assalto em algo de proporções ainda maiores, deixando o espectador extremamente investido no que ele está assistindo. O grupo homônimo, seja através de flashbacks ou dos eventos atuais do filme, possui um desenvolvimento ímpar, seja individual, ou da relação do grupo como um todo. Viola Davis, como sempre, está excelente, mas a graça dessa produção é vê-la com atrizes igualmente poderosas. Davis facilmente roubaria a cena com um elenco diferente, mas Michelle Rodriguez e especialmente Elizabeth Debicki brilham igualmente, defendendo suas personagens com habilidade e competência. Ainda assim, o mesmo tratamento é dado aos coadjuvantes e aos “antagonistas”, desde o candidato corrupto interpretado por Colin Ferrell até o capanga interpretado por Daniel Kaluuya. Há ainda a participação mais que especial de Cynthia Erivo. A atriz, que começou nos palcos da Broadway, surge lentamente na trama em um papel pequeno, logo ganhando cada vez mais espaço na narrativa e entregando uma das personagens mais interessantes do longa.
O roteiro de Gillian Flynn não se preocupa em acelerar o ritmo, preparando cuidadosamente o terreno para a grande ação que a trama precisa entregar em algum momento. O mais interessante, no entanto, são os incrivelmente precisos comentários sociais e políticos inseridos na história, que em nenhum momento parecem forçados. Tudo funciona de maneira orgânica: os eventos passados, sua conexão com o presente e o backstory dos protagonistas são histórias que podem ser vistas a qualquer momento em um noticiário na televisão. É uma escrita, com o perdão da escolha de palavra, focada e objetiva, que com o peso das cativantes atuações e uma direção fantástica, convergem para um dos filmes mais inesperadamente emocionais e poderosos do ano.
Além disso, é preciso destacar novamente a maestria com a qual McQueen faz seu trabalho. Com uma fotografia sóbria e escura, de cores cinzentas, o diretor sempre traz os personagens em planos abertos, onde o cenário não está ali à toa: há sempre uma história sendo contada, através da movimentação, do figurino e dos planos. Falando nisso, há alguns planos bem interessantes, para dizer o mínimo, que fazem uma contraposição perfeita aos enquadramentos mais comuns, especialmente nos momentos finais. Durante a última cena, o investimento emocional pode ser tamanho que será impossível não se emocionar um pouco.
Vindo de Steve McQueen, seria difícil imaginar apenas mais um thriller sobre gente poderosa realizando roubos milionários. As Viúvas, portanto, é um dos melhores exemplos de como o cinema pipoca pode flertar com temas maduros e sérios e entregar mensagens poderosas.