Cam e a realidade nos tempos digitais
Uma mulher. Um bate-papo. Um ranking. Uma sala. Uma câmera. Esses elementos são os principais componentes da primeira sequência de Cam, novo filme da Netflix. A história fala sobre Alice (Madeline Brewer), uma jovem que busca sucesso na internet sendo uma ‘camgirl’. Os problemas começam quando, em determinado dia, ela não consegue mais acessar sua conta e descobre uma outra mulher com rosto idêntico ao seu tendo acesso a seu canal. Então, Alice precisa descobrir quem é a misteriosa sósia enquanto tenta provar para todos seu real paradeiro e quem ela realmente é.
Em seu trabalho de estreia, o cineasta Daniel Goldhaber evoca elementos de diversos outros filmes, sejam eles recentes ou clássicos. Acima de tudo, com sua discussão sobre a tecnologia como forma de controle humano, ele busca essas características para criar algo próprio e único. A começar pela relação da protagonista com a sua câmera, uma relação de total dependência e admiração por essa. Com um uso sempre de contra-plogée para mostra-lá, Goldhaber evoca esse superioridade desse aparato eletrônico, controlando a vida das pessoas, algo similar ao realizado por Stanley Kubrick com o Hal 9000 em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Essa questão traz diversos elementos necessários para o andar da narrativa, ao sempre brincar com essa bizarra associação do espaço virtual/espaço real, desde os primeiros minutos de duração.
O diretor, aliás, rememora esse conceito da tela como elemento primordial para uma trama, algo disseminado recentemente no cinema com Amizade Desfeita, Buscando…, entre outros. Porém, para Goldhaber, acima de tudo isso, o importante para entender sua personagem principal é como ela busca duas imagens, uma verdadeira e outra também verdadeira (algo exemplificado pelos diversos espelhos durante a história). Na primeira, é a sua face para o mundo, como ela se comporta e o vinculo familiar, algo perpassado sempre por uma fotografia mais limpa, sempre denotada por diálogos extremamente sensíveis dentro desse núcleo (inclusive na própria segunda sequência do longa, onde é apresentado o conflito da personagem não ter contado de seu trabalho para a mãe). Na segunda, é o seu lado contrário virtual, na qual Alice gera uma persona cheia de regras de conduta, buscando esse lado sexy necessário para seu emprego. Ela se vê sempre em conflito nos momentos em que diversos dos seus seguidores buscam ultrapassam suas duas personalidades, tentando entender quem ela é, explicitado bastante na sua relação com Tinker (Patch Darragh) e Barney (Michael Dempsey).
Tematicamente, a obra analisa também a busca pela fama a todo custo na internet, um ponto muito importante para o realizador. Na trama, o objetivo inicial de Alice era se tornar uma das 50 camgirls mais assistidas do mundo. Esse plano da protagonista é traçado como um objetivo a ser alcançado a qualquer custo, chegando ao ponto de haver um suicídio forjado nos primeiros momentos. Essa efemeridade do virtual é ainda salientada pela cena em que, após chegar a 50ª posição, Alice despenca no ranking, sem nunca conseguir alcançar o que esse outro ambiente traz para ela. A expectativa por seguir determinadas circunstâncias sociais, é renegada em um meio aonde não se há apoio e se perde por um simples clique. E isso é ainda trazido pelo diretor ao mostrar uma facilidade de criar uma conta, de doar dinheiro para essas meninas e muito mais.
A construção do suspense é narrativamente brilhante para a relação do público. Se, como falado acima, somos colocados como telespectadores da vida dessa mulher, nos relacionamos de forma bem direta com todos os seus anseios e medos. Esse fator é importante para entender todo o medo a partir do instante em que a tensão é colocada a prova, além de sua posterior construção. Diversos elementos são jogados como forma de pistas para quem assiste, mas se tornam sempre também jogos de uma realização narrativa sempre fantasiosa. Nada realmente é o que parece ser, trazendo uma carga de talvez, nós que assistimos, estarmos também em uma realidade a parte, em um mundo a parte. Tudo acaba sendo elevado ao máximo no grande clímax, envolvendo esse lado de discussão da realidade e entendendo como isso se forma nos novos tempos.
Todavia, essa construção a partir de vários momentos únicos acaba por ser um grande calcanhar de aquiles do longa, transformando situações inicialmente cruciais em furos claros de roteiro (como a aparição de alguns personagens, maiores explicações sobre duplicatas, entre outros). Existe, obviamente, um propósito de trazer tudo para um sentido mais subjetivo, mais metafórico. Todavia, essa base das próprias situações presentes na obra acabam deixando tudo um pouco raso para um entendimento interno, intrinsecamente ligado a uma busca por maiores criações metafóricas em cima de tudo.
Cam é um filme inteligente dentro de uma proposta extremamente diferenciada. É muito mais do que simplesmente uma narrativa sobre o papel social das pessoas, mas é um estudo sobre o entendimento do ser humano dentro da sociedade em que somos julgados pelo nosso papel virtual. Além de ser importante para os tempos atuais, é uma película sobre o ser e o não-ser, abrangente para uma pungente discussão importantíssima aos seres humanos. Que Daniel Goldhaber não pare por ai.