Crítica – After Yang

A vida só pode ser vivida em uma direção, para frente. Mas ela só pode ser plenamente compreendida quando olhada para trás, com um certo distanciamento dos acontecimentos. A visão do agora sempre é limitada, mas isso não significa que esse “olhar para trás” seja completo, já que esbarra em outra questão, muitíssimo humana: a memória, e por ser algo tão humano, é claro que é falho, nossas lembranças não são retratos fiéis de um evento, e não podemos visitá-las fora de nossas mentes

Máquinas também compartilham da ‘memória’, que se tornam um lugar mais seguro para guardar as nossas, de certa forma. É por meio dessa “ponte”, entre a memória humana e a das máquinas, que Kogonada constrói a sua narrativa em After Yang, uma ficção científica que lembra um pouco A.I – Inteligência Artificial, mas com certa inversão da jornada. Se no filme de Spielberg é David que vai em busca de sua humanidade, o diretor faz com que os humanos percebam a humanidade no robô.

Embora “robô” não seja o termo usado no mundo de After Yang, mas sim “techno sapiens”, humanóides que famílias podem adotar por diversos motivos. Jake (Colin Farrel) e Kyra (Jodie Turner-Smith) adotam Yang (Justin H. Ming) para que a sua filha, também adotiva, Mika (Malea Emma) possa ficar mais próxima de suas raízes chinesas, algo que nenhum dos dois pode fazer. Os dois são como irmão e irmã, até que um dia, no meio de uma brincadeira familiar, Yang para de funcionar corretamente, para a tristeza de todos. A jornada para que o ente querido volte a ser o que era faz com que Jake passe a assistir as memórias de Yang, se deparando com a complexidade da existência do ser que adotou.

A humanidade de Yang nunca é colocada em dúvida no filme, e é ela que pauta até mesmo a forma do filme. Conforme Jake se aprofunda mais e mais nas memórias, que servem até para ele mesmo se reconectar com os seus sentimentos, Kogonada começa a se aproximar mais e mais dos seus personagens. After Yang é marcado por composições cuidadosas, que remetem muito ao cinema de Yasujiro Ozu, muito preocupado em explorar a movimentação nas pessoas dentro dos quadros, e criando quadros dentro de quadros por meio da arquitetura dos ambientes. Mas há também um certo distanciamento dos personagens, que acaba criando uma certa frieza.

Esse distanciamento, esse cuidado, some quando vemos o mundo por meio das memórias de Yang, e planos médios e closes passam a constituir  as cenas dos filmes, se tornando mais próximo dos personagens conforme eles entendem a dimensão da vida de Yang, que não se resume a existência com somente aquela família, mas sim até mesmo a interesses românticos que existiam previamente. Não é a toa que as memórias do personagem são representadas visualmente por meio de constelações, que “explodem” conforme acessadas. Yang tinha um universo dentro de si.

Assim como Columbus, filme prévio de Kogonada, After Yang é um filme de “passeio”. Porém, se no primeiro as caminhadas eram por um local físico, a cidade título do filme, agora é ela se dá por meio das memórias de alguém que, mesmo não sendo humano no sentido estrito da palavra, possuía humanidade dentro de si.

Texto para nossa cobertura do Festival de Sundance 2022

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