Crítica: Eu Nunca…
No início de sua empreitada como produtora de conteúdo original, a Netflix investiu em títulos grandes, estrelados por estrelas de cinema e roteiristas premiados. Com o passar dos anos, essas produções cederam espaço ao nicho mais barato (em questão de orçamento) e com bastante retorno nas redes sociais: as séries adolescentes. Lançado no fim de abril, Eu Nunca… poderia facilmente se perder entre o mar de conteúdo da plataforma criado e lançado baseado em algoritmos, mas uma abordagem diferenciada (sem fugir dos clichês que o gênero pede) torna a produção criada por Mindy Kaling e Lang Fisher em algo muito melhor e mais interessante do que teria obrigação de ser.
A história segue a cartilha de uma comédia romântica escolar: a jornada de uma adolescente navegando as tribulações típicas dessa época, equilibrando seu grupo de amigas, manter um bom currículo escolar e escolher qual será a universidade de seus sonhos, iniciação da vida sexual, popularidade e festas… Tudo aquilo que quem viu dois filmes da Sessão da Tarde já está careca de saber como é o procedimento. Alguns temas, no entanto, distinguem a sinopse de “Eu Nunca” de suas milhares de primas: diversidade, herança familiar e luto. Ao mesmo tempo em que enfrenta todas as questões acima, a série também detalha a protagonista Devi Vishwakumar (interpretada pela novata Maitreyi Ramakrishnan) em um processo de luto após a morte de seu pai, assim como os constantes embates que ela acaba criando com sua mãe por não querer obedecer aos costumes e tradições da cultura indiana.
A representatividade da série também não se limita à Devi. Suas duas melhores amigas não são brancas e uma delas vai descobrindo sua sexualidade ao longo da temporada. O grande galã também é descendente de japoneses, um toque da produção ao descobrir a herança do ator, já que o personagem era originalmente escrito como branco. Toda a narrativa adolescente envolvendo brigas entre amigos, festas que resultam em problemas, disputas por popularidade e casos românticos que não dão certo está lá e não deixa de funcionar e entrega alguns bons momentos cômicos. Mas apesar de ser esse elemento que domina o tom e a história, não é ele que faz a produção se destacar.
A atenção e o cuidado que os roteiristas dão aos seus personagens é essencial para que o público se preocupe com eles até em seus momentos mais bobos, que não são poucos. Portanto, quando as cenas mais sensíveis e emotivas aparecem, o poder e o peso daquelas histórias e daquelas pessoas se mostram de verdade. Toda a construção de Devi e a importância da terapia em seu crescimento e processo de superação do luto ainda nos rende uma ótima interação entre Ramakrishnan e Niecy Nash, sempre ótima e brilhando em papéis pequenos. Outro exemplo disso é o episódio cinco, que se dedica a passar tempo com Ben, um personagem que só cresce na história e cujo background pessoal só melhora a qualidade da série. É um episódio que funciona tão bem pelo bom roteiro ou pela participação mais que especial de Andy Samberg? Talvez os dois.
Ainda assim, há momentos que se mostram tão atrasados quantos os estereótipos escolares e que podem acabar prejudicando o saldo final de muita gente. As recorrentes piadas envolvendo um personagem gordo que só aparece pra comer exageradamente e ser motivo de humor ou estranhamento por isso, assim como toda a justificativa para que Devi recuperasse o movimento das pernas quase matam os bons momentos da série. Parece que os roteiristas não entram em um consenso sobre o tom e a natureza das piadas e misturam esses momentos sem se preocupar com a coesão entre todos os setores do seriado. É um humor que simplesmente não funciona.
Entre erros e acertos, Eu Nunca… consegue equilibrar comédia pastelão com um sensível desenvolvimento de personagens, tornando a produção uma das melhores opções de distração durante esse período de pandemia. Uma série recheada de boas intenções, a maior delas é te fazer rir e isso, pelo menos, ela entrega muito bem.