Crítica – Matrix Resurrections
Esse texto contém spoilers do filme
O que define a nerdice? Pode ser o amor por algo em comum, ou a emulação de um passado distante no presente, ou até mesmo o ato de ser uma pessoa ser mais inteligente – ou ao menos que busca mais inteligência – que os demais. No entanto, se tem algo que liga todas essas coisas e está na veia e no âmago do entendimento sobre o nerd em si é a referência. Reverenciar para gerar ou uma nostalgia ou a emoção de fazer parte de algo que está muito além do simples lado físico, já que faz parte de um universo muito mais amplo, quase como uma tribo, sociológicamente.
O universo nerd está cada vez mais em voga no cinema e ganhou sua relevância recente devido, especialmente, as franquias de herói. Apesar disso, esses filmes se utilizam muito de uma base para um apontamento. É quase como se o público estivesse ali menos para se ver como parte desse mundo, construir emoções, e sim, na realidade, como um mero observador. É quase uma quebra de lógica de tudo que essas produções já construíram ao longo do tempo. A cena de Star Wars: O Império Contra-Ataca em que Darth Vader revela ser o pai de Luke. só se coloca presente a partir do instante que aquela referência para tudo chegar até ali está onipresente.
Lana Wachowski, junto de sua irmã Lilly Wachowski, sempre parece ter compreendido muito bem o que é essa realidade das referências como uma construção de algo. Nunca deixaram de lado os apontamentos, mas sempre com o uso da forma para construir algo em cima disso. Não a toa, o primeiro The Matrix, de 1999, é um longa que parece chupar e abraçar diversas outras obras, como Ghost in The Shell e Neuromancer. As letras descendo não mentem. No entanto, fazendo uma quarta parte para a franquia de extremo sucesso no mundo da ficção científica, o que trazer a mais? Quais as referências podem ser ainda repensadas dentro desse contexto? É assim que Lana trabalha Matrix Resurrections como um grande amálgama de uma compreensão das próprias referências – para construir algo novo. É talvez o filme nerd definitivo.
Essas questões aparecem desde a primeira cena. Nela, vemos quase uma reprise da abertura propriamente do filme dos anos 90, em que Trinity (Carrie-Anne Moss) é perseguida por alguns policiais e luta contra eles. Todavia, em vez de estarmos imersos nesse contexto, somos os próprios observadores de uma realidade múltipla. É quase como se a direção já estivesse colocando o público no papel de construtor, para destruir esse elemento posteriormente. E isso decorre do olhar para esse momento por Bugs (Jessica Henwick), uma cientista que tenta entender por que está observando esse momento novamente.
Mais uma vez, Lana quase traz uma pílula vermelha para a audiência, mostrando as próprias incontáveis vezes que essas mesmas pessoas assistiram a trilogia original antes do quarto longa. Nessa brincadeira de ser passivo agressiva, a cineasta reconstrói um universo pelos olhos de Neo (Keanu Reeves) não como uma figura tímida, como inicialmente, ou nem como alguém desmetido, como finalizou. Ele é um ser quase apático e confuso para com essa sociedade que o cerca, especialmente pelo fato de ter feito extremo sucesso como desenvolvedor de jogos produzindo, adivinha só, uma trilogia de games chamada The Matrix. Nesse processo de autoreferência e autoconsciência, Matrix Resurrections trabalha no olhar que vai ter sobre esse próprio e também de tudo que veio antes: não importa sobre as alegorias ou qualquer tentativa de gerar algo em cima da história (a cena em que vemos os desenvolvedores discutindo ideias do que seria o jogo traduz bem isso). O que verdadeiramente está onipresente dentro da saga é o poder da especulação e da brincadeira com isso tudo. É o mito da própria nerdice. E nada melhor que fazer isso através das próprias referências.
Dentro desse grande mix cômico, Lana até se traduz em um olhar bem ácido sobre esse mundo criado pós o longa de 1999. Na boca de um dos personagens, ela coloca que a arte e os filmes “não são feitos mais como antigamente”. O moralismo se traduz para a grande ironia que a produção trabalha a todo momento, de realmente instigar esse público, que cresceu e construiu o interesse pelas sagas a partir de então, a repensar o que é o próprio consumo no mundo nerd. Para que grandes possibilidades? Ou até alguma alegoria filosófica? A ideia aqui é buscar apenas o essencial, o entendimento do que traz o verdadeiro amor por isso tudo.
Nesse sentido, a elucidação e a paixão, que sempre moveu a saga, de Trinity e Neo, é um ponto fundamental. É o poder da crença, da possibilidade, de verdadeiramente sair da própria realidade. Nesse sentido, a segunda metade da trama, em um grande arco para trazer ela de volta à Matrix, se traduz em uma tentativa sem fim de ser apaixonado por um mundo em que tudo é possível. A ideia dos próprios personagens da série, que sempre teve um quê de heróico, aqui se estabelece em um novo padrão, já que o heróismo é inerente a essas figuras. Se o universo nerd diz que todos podem tudo, por que não essas figuras que conhecemos tanto?
Por isso, duas cenas mais próximas ao fim traduzem toda essa brincadeira de especulação, amor e devoção as próprias referências. A primeira, do toque nas mãos, contra um mar de guardas. A segunda, o vôo de Trinity, segurando Neo. Enquanto nos acostumamos a ver toda a saga reportar ele como a figura messiânica, por que não ela também? Por que não as próprias referências se misturarem? Por que não amar tudo que Matrix representa de vários jeitos diferentes?
Muito mais que qualquer resposta, Matrix Resurrections é um filme de questionamentos. Mas não sobre a própria narrativa ou a forma de fazer algo, e sim ao público. Olhando com carinho e apreço a tudo que foi criado anteriormente, Lana Wachowski tenta traduzir o que pode ser o futuro. Se o mundo nerd não se entende totalmente, talvez ele deveria retomar ao que verdadeiramente sempre importou por todos os filmes, franquias, quadrinhos, livros e mais: a paixão, a especulação e, especialmente, a necessidade de acreditar.