Crítica – Rosa Tirana
A percepção infantil é capaz de transformar a mais dura das realidades em algo mágico, lírico, como forma de sobrevivência. E nada melhor para costurar os opostos entre doçura e amargor do que a estrutura de fábulas, a do conto de fadas, que justamente parte de coisas traumáticas – quantas dessas histórias tem em sua concepção a morte de um ente querido? – para adentrar o mundo fantástico, de fadas e animais falantes. Rosa Tirana adota a perspectiva da sua jovem protagonista, Rosa (Kiarah Rocha), para mostrar a realidade do sertão com base nas fábulas.
O longa dirigido por Rogério Sagui quer, antes de entrar na magia, evidenciar as agruras do sertão. O filme abre destacando o quanto o local é seco, árido, com um letreiro informando que o sertão passa pela maior seca de sua história. Vemos uma ossada de boi sendo tomada pela areia, e em seguida, uma espécie de releitura do quadro “Os Retirantes” de Portinari, com um grupo de pessoas andando em direção à câmera, mas com uma diferença importante: não há crianças, pelo menos não a vista. Em uma rede amarrada a um tronco carregado por dois homens, é possível ver os traços de um corpo. É um lugar de morte.
Mas há também um pouco de vida, representada tanto por Rosa, a protagonista, quanto por uma rosa literal, que paira no quadro enquanto a menina brinca de balanço. A menina mora em um casebre com sua mãe (Stela de Jesus) e avô (José Dumont), encarando as dificuldades da seca. Decidida a trazer a chuva de volta para a região, Rosa parte sozinha em busca da rainha do Sertão, a Nossa Senhora do Imaculado. Na sua jornada, ela encontrará os diversos aspectos da vida da região, mas de forma fabulesca.
Assim, Rosa Tirana não se guia por uma estrutura lógica para contar sua história. Como bom conto de fadas que é, as sequências não tem exatamente uma conexão certa umas com as outras, que possuem elementos muito inspirados. O encontro com um coronel maligno, quase um lobo mau, é apropriadamente sinistro, com a presença deste marcada pela sua voz rude, mãos grossas e chicote, nunca pelo seu rosto. É evidente o esforço em dar ares folclóricos a problemas persistentes no sertão, como essa própria sequência mostra, assim como outra mais tarde, com os seres de barro, que na verdade são pessoas comuns em processo de migração.
De encontro a encontro, Rosa segue sua jornada, mas a questão é que o longa não consegue articular muito bem suas ideias, e apesar do impacto visual de alguns momentos, como a cena do circo, nada deixa marcas duradouras, já que elas são muito breves e a protagonista interage pouco com aqueles acontecimentos além de transitar entre um e outro em silêncio, uma mera observadora daquela que deveria ser a sua jornada.
Há momentos em que Rosa Tirana parece querer ser mais videoclipe do que filme, e talvez presumir isso não seja tão distante da realidade, já que um dos grandes destaques do longa é uma música inédita na voz de Elba Ramalho, com composição e arranjo musical do próprio diretor, que é realmente muito tocante. A produção é interessante, e aqui e ali há momentos potentes, mas nunca chega a se sustentar de fato.
Esse texto faz parte da nossa cobertura da 24ª Mostra Tiradentes.