Crítica – Sobre os Ossos dos Mortos

Janina Dusheiko é acordada no meio da noite pelo seu vizinho, Esquisito – apelido esse que ela mesmo deu. Ele, sempre bastante distante dessa, fala que o outro vizinho dos dois morreu. Sem entender muito bem, Dusheiko o acompanha até a casa de Pé-Grande – outro apelido colocado por ela -, na qual é encontrado morto e em uma cena bastante catastrófica. Os dois, antes de entrar, haviam visto alguns lobos, bastante incomuns na região. Antes de chamarem a polícia, Esquisito resolve colocar o corpo do falecido em uma posição melhor, retirando o osso em que, teoricamente, ele teria morrido comendo. Janina, transtornada dentro da situação, parece não entender bem o que teria ocorrido.

É assim que se dá o início Sob os Ossos dos Mortos, novo livro da polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Nobel de Literatura de 2018. Dusheiko não é apenas a protagonista, mas também a narradora da história, contando tudo sobre seu ponto de vista. Além de bastante complicada por si só, ela ainda passa seu tempo entre ser professora de inglês e tomar conta da casa dos moradores que vivem por ali, porém não passam o inverno por aquelas terras. Cheia de manias, ela é uma senhora, quase totalmente sozinha naquela região. Sua vida, até então monótona, parece quase ganhar um propósito com a primeira morte. Essa que, para ela, foi um assassinato.

Olga coloca uma narrativa que gira sempre sobre os acontecimentos iniciais. A vida de Janina é totalmente modificada por esse ato específico. Ela considera que os animais silvestres estariam se vingando dos humanos, em uma relação até bem interessante com o filme Zootopia. Mesmo sendo obras diferentes, ambas possuem uma questão quase racial ali no meio, sempre conectada a modificação de corpos. A autora usa e abusa da relação corporal dessa sua personagem principal com o ambiente. Ela sempre conjuctura bastante em cima de como o corpo de Pé-Grande, além de outros futuramente, teriam sido achados. É uma observação que gira entorno de um certo comportamento moral e estético de mundo.

Olga Tokarczuk, vencedora do Nobel de Literatura de 2018

É interessante como o peso dos acontecimentos nunca recai nos hábitos da protagonista. Suas diversas relações de mundo e problemáticas ainda continuam, todavia mais afetadas do que nunca. Por se tratar de uma história narrada por ela, a subjetividade vira um argumento importante, visto que não é possível saber se os atos ocorreram daquela forma. Tokarczuk consegue deixar isso bem claro e direto ao leitor quando coloca expressões de cunho pessoal, afim de rememorar que estamos vendo um ponto de vista apenas. Essa trama pode ter diversos lados, entretanto corroboramos apenas através de uma realidade.

Em muitas vezes a investigação fica em um segundo plano. Ela realmente não é a mais importante ao desenvolvimento de um mundo criado quase a partir de gestos. Todos os personagens vivem através de gestuais do passado ou de um futuro ainda imprevisível, mas precisando estar atentos e vivendo uma cidade de uma destruição temporal. O inverno gera um ar bastante ínspido, além quase desagradável. As mortes, dessa maneira, viram quase uma consequência de um ambiente esquisito e quase inóspito. A polícia vira uma mera visualizadora e não investigadora por si só. Sendo assim, Dusheiko passa apenas de observar as casas, para tornar-se ativa.

Olga Tokarczuk constrói um livro pautado em entender uma nova realidade. A autora coloca um enredo afim de desenvolver um microuniverso de relações bem mais complexas do que aparentam. Questões raciais e a complicada relação entre o homem e a natureza – essa tão em um pauta nos tempos atuais – adentram em uma obra que, na superfície, é sobre uma mulher investigando o meio a sua volta. Sobre os Ossos dos Mortos, assim como o título mostra, é uma fábula para entender como os mortos habitam a realidade presente.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *