Entrevista com Fefê Torquato, de Tina: Respeito

Iniciada em 2012, a ideia e concepção da Graphic MSP parece ter se modificado ao longo do tempo. Quando o projeto começou em Astronauta: Magnetar, o sentido era mais dar uma vida nova aos clássicos personagens da Turma da Mônica. Cada vez mais artistas brasileiros de renome foram sendo chamados para poder realizar trabalhos e explorando novas tendências narrativas. As temáticas, então, ganharam voz maior para novas possibilidades de trabalhar com esses personagens.

Isso ganhou novos patamares em abril de 2018, quando foi lançado Jeremias: Pele, sobre racismo. Histórias de Maurício de Sousa acabaram nunca diretamente abordando isso, então serviu como uma certa revolução. Agora, em 2019, a MSP lança Tina: Respeito, dando continuidade ao conceito de debates contemporâneos em cima dessas HQs.

Entrevistamos, assim, a roteirista e desenhista dessa obra, Fefê Torquato. Ela, responsável por alguns outros quadrinhos independentes, ganhou maior destaque na mídia quando fez Gata Garota, pela Nemo, em 2015. Agora, ganha a oportunidade de uma publicação mais mainstream. Para além disso, eleva o debate sobre a importância de entender o assédio como uma forma dominante da sociedade ao longo da história. Bom, confira todo o papo abaixo:

A capa de Tina: Respeito.
Senta Aí: Como surgiu sua participação em Tina? A escolha e a construção da história foram inteiramente suas?
Fefê Torquato: Em agosto de 2018, o Sidão [editor da Graphic MSP] me telefonou me convidando pra fazer a arte da Tina. Ele conhecia meu trabalho digital e em preto e branco de dois anos antes e foi apenas depois de checar meu Instagram e trabalho atual, em aquarela, que ele viu que eu poderia ser uma boa opção pra fazer a Tina. Ele tinha em mente outra pessoa pra escrever o roteiro, mas me perguntou se eu teria interesse, já que eu não fazia quadrinhos há 2 anos. Eu falei que com certeza queria o roteiro, então ele me pediu pra mandar uns esboços de ideias na semana seguinte. O tema geral já estava estabelecido: seria assédio no trabalho. E em cima desse tema eu criei toda a história, que não se modificou muito desde os esboços iniciais.
SA: Esse é mais um trabalho da Graphic MSP que trazem discussões sobre preconceitos e problemáticas sociais. Como você se sente sendo parte disso? Qual a importância, na sua visão, que esse projeto pode ter para mudar as pessoas?
FT: Eu sou feminista desde criança, desde que tive meu primeiro contato com o termo. Mas, mesmo me informando sobre o movimento há muitos anos, nunca me achei apta o suficiente pra fazer uma história que tratasse de alguma questão sofrida pela mulheres de forma tão direta. Minha maneira de lidar com esses temas sempre foi nas entrelinhas. Então, foi uma grande pressão e desafio falar especificamente de assédio. E ainda por cima com uma personagem criada pelo Maurício de Sousa.
Mas fiquei feliz com o desafio e gostei do resultado. Quadrinhos são uma forma de comunicação, assim como qualquer veículo artístico. Eu acredito que a arte é a melhor forma de criar empatia e inspirar. Então, nada melhor do que tratar de temas sérios como esses, usando personagens populares e tão enraizados na nossa cultura como os criados pelo Maurício de Sousa.
SA: Na HQ, toda a questão do assédio vai sendo construída aos poucos. Como você vê a importância disso estar onipresente e feito dessa forma dentro da narrativa?
FT: Muitas pessoas ainda acreditam que assédio/abuso só acontece em becos escuros,“na parte errada da cidade”, envolvendo armas e muita violência física. E, mesmo assim, só se confirma mesmo como crime se a vítima provar que “fez tudo certinho” e não provocou através das suas roupas e atitudes.
Como convencer essas pessoas que uma cantada fora de contexto é uma forma de assédio?  Que existe abuso muitas vezes dentro de uma relação, um casamento? Homens não querem se enxergar como monstros e mulheres não podem se ver como vítimas.
Com esse quadrinho, minha intenção é esmiuçar o dia a dia de uma garota, de forçar empatia por ela. Detalhando sua rotina eu tentei fazer o leitor SER a Tina por algumas páginas, e entender o que é ter que andar na rua à noite e ter de prestar atenção em tudo e em todos, enquanto conversa com alguém por mensagens pra poder se sentir um pouco mais segura. O que é tentar ser simpática com um colega, mas não muito simpática pra ele não pensar que você se interessa por ele, tentando evitar assim alguma investida inconveniente, mas não muito indiferente pra ele não se voltar contra você e te taxar como “mal amada” entre coisas piores. O que é entrar num Uber e compartilhar teu trajeto com alguém conhecido ou pegar o número do táxi e enviar pra alguém “caso aconteça alguma coisa”. Gastar horas pensando na roupa que vai usar, que depende de onde você vai, que horas vai voltar, se vai pegar transporte público ou se vai ter companhia.
Ser mulher (lgbt, negro, indígena…) é exaustivo e, no entanto, nós estamos aqui, prevalecendo.
Trabalho de Fefê.
SA: A obra reverbera bastante do movimento MeToo pela questão da denúncia jornalística. Tudo isso foi verdadeiramente uma inspiração? 
FTA gente vive num momento muito importante na história. É a união da minoria, que finalmente se entende como maioria e enxerga o poder disso. É claro que qualquer movimento gera uma reação, que tenta manter o status quo, mas os movimentos feministas, em especial o feminismo interseccional, lgbt, negro, não são um modismo, são movimentos fortes e consistentes que só estão começando. Eles representam a evolução da nossa espécie e nada impedirá isso. A nova geração está aí pra confirmar, como podemos ver recentemente nas notícias. Isso é inspirador pra mim.
Uma das primeiras iniciativas que me fez pensar mais sobre assédio e abuso foi a hashtag #PrimeiroAssédio da ThinkOlga. Eu achei que não tinha nenhuma história pra contar até que parei pra pensar e lembrei de muitas, algumas quando eu tinha 8/9 anos de idade, outras quando eu era adolescente, muitos sérias envolvendo médicos. Como eu posso ter esquecido? Quando se vive diariamente com esse tipo de situação, esquecer pode ser uma questão de sobrevivência. Mas quando encaramos de frente e, principalmente, temos o apoio de outras pessoas que passaram pela mesma situação, é que de fato conseguimos superar e dar um basta nesse absurdo.
SA: Por fim, depois de finalizar tudo, como você sentiu o impacto de Tina?
FTMuito positivo, acima de tudo. Tive zero mensagens hostis desde que foi lançado, muito pelo contrário. Apenas a satisfação indescritível de notar como a história conversou tão pessoalmente com muitas pessoas, que se sentiram validadas e inspiradas. E também muitos que, por pelo menos alguns momentos, puderam sentir o que é ser uma mulher na sociedade de hoje.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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