Gal Costa e seus mistérios

Para todo dublê de escritor, escrever no calor da hora é uma provação. Quando o caso é manejar a arte de elaborar obituários (devo a atenção aos obituários a Matinas Suzuki) tudo fica mais difícil. Ora, e a atenção para não repisar os lugares comuns e os clichês fica redobrado. Nada disso é capaz de conter esta força estranha que me tomou para escrever sobre Gal Costa. Não é um obituário, pois ela está tocando ao fundo e no fundo. É porque é sobre ela que escrevo e não sobre sua partida. Gal Costa ocupa um lugar único na cabeça de cada brasileiro e brasileira. Isto para dizer que Gal não partiu, encantou-se.

Gracinha, carinhoso apelido que seu ídolo, João Gilberto, a deu, resume muito bem a potência e a gravidade da voz de soprano de Gal: foi com graça que ela cantou a voz amiúde em seu primeiro disco, dividido com Caetano Veloso, Domingo (1967). Perguntado por ele sobre quem seria o maior cantor do Brasil, a resposta de Gal, ainda Maria da Graça, dizendo ser  João Gilberto, arrebatou o baiano e deu ensejo ao contato (para que resumir o contato como amoroso, carinhoso, sexual?) dos cabelos ainda curtos mas das cucas maravilhosas desses dois. Não tenho interesse nenhum em esquadrinhar a vida ou a obra de Gal, mas seu começo na Bahia, sua única vocação: quando perguntada sobre o que queria ser quando crescer ela respondia sem titubear “cantora”. Nos diz muito.

E, leitores e leitoras, foi. Uma das maiores. Num país de cantoras, Gal Costa ocupa lugar de destaque. Sua história é parte da História do Brasil. Dado o golpe de 1964, o disco Domingo tornou-se A grande artista da Tropicália – quando Gil e Caetano foram presos e exilados, ficou para ela e mais outros o bastão do movimento. Porém, quando se coloca um cristal frente a um feixe de luz, a luz se multiplica e novos feixes de luzes surgem – Gal é nosso cristal e não foi diferente: veio “Baby” (composta para Bethânia, mas imortal na voz de Gal em disco em conjunto com a turma tropicalista), “Divino Maravilhoso” onde chuta o pau da barraca provinciana brasileira com seu berro primal rock and roll frente a um acuado público. “Meu Nome é Gal”, em 1969, onde as guitarras da jovem guarda do Rei Roberto e Erasmo Carlos (achincalhadas não a muito) se juntam a voz joãogilbertiana de Gal com um perfil biográfico declamado pela cantora até seu grito para expurgar a tirania, pois “é o amor que faz o homem”.

Continuou com Roberto e Erasmo, em consagração, ao gravar “Eu sou Terrível” aos berros. Terrivelmente necessário: há momentos nesta época em suas gravações em que sua voz gritando mimetiza todo um espírito do tempo de censura, aprisionamento, tortura e morte; como se gritasse por todos aqueles que foram calados. Gravou Geraldo Pereira, mostrando que é com a tradição que se realiza a boa modernidade. Em disco de 1973, com a guarânia “Índia” e disco homônimo, Gal exibe seus lábios vaginais sobrepostos por uma tanga vermelha. Já na contracapa apenas colares cobriam seus seios. Muitos desses momentos, como os seios à mostra quando cantou “Brasil” em 1994 em espetáculo dirigido por Gerald Thomas. E Gal, em todos seus pontos altos e menos altos, – alguém da estatura de Gal não produz pontos baixos, mas equívocos e movimentos erráticos, muitas vezes por culpa das gravadoras e pelo mercado musical. Afinal, aqui é o “cu do mundo”.

Estamos navegando em águas comuns e que se guardarão invariavelmente e distintivamente na cabeça de cada um. Vou falar da minha Gal: a assisti em várias oportunidades. Falo de alguns momentos para tentar dimensionar Gal, não na História do Brasil, isso o povo brasileiro já fez, mas em meu consolo solitário de ouvinte, só que não órfão. Quando Gal entrou no Theatro Net Rio vestindo um vestido preto e começando a cantar “Da Maior Importância” em show dirigido justamente por Caetano Veloso é dar nó em pingo d’água. É juntar as duas pontas da vida, o amor daqueles garotos segue pulsando na sua maturidade. Naquele 2013 onde tudo era certo como dois e dois são cinco, o “Tudo Dói” me fez sentir náuseas – lá estava acontecendo alguma coisa que só com o tempo foi capaz de sedimentar. Por fim, quando Gal Costa, a voz de cristal, que já não mais alcançava os agudos com vigor, imitou Tim Maia em uma de suas músicas mais importantes, queiram os eruditos ou não, “Um dia de Domingo” eu entendi quem era Gal Costa.

Quando aquela mulher lhe rouba a atenção e faz o coração do público pulsar no mesmo compasso é um caminho sem volta. Ali está Gal Fa-Tal: linda, hipnótica e ciente de sua função. Esta Gal Costa ao gravar os questionados (pela turminha da neófita MMPB) Roberto e Erasmo. Gal com Gil e sua troca de apelidos, onde Gil é ‘Jiló’ e Gal é ‘Gaúcha’. Gal cantando “Esotérico” com Maria Bethânia no show Doces Bárbaros (1976) em estado de sublimação espiritual. Gal com Melodia, Buarque, Macalé, Nando Reis e tantos outros compositores que cimentaram o repertório da cantora que fez o Brasil. É impossível dar conta de Gal Costa, pois é impossível desvendar os mistérios. Em música de Caetano de 1965, “Sol Negro”, ele exprime em letra o timbre grave de Bethânia, recém saída de Carcará e o cristal na voz de Maria da Graça que entra com uma ladainha “Valha nossa senhora/Há quanto tempo ele foi-se embora/Para bem longe/Para os braços de Iemanjá/Adeus”. Sem essa de adeus, Gal. Como sabemos bem, o diamante não se quebra e muito menos parte. Mãe de todas as vozes estará ecoando em cada canto debaixo do chuveiro, em cada karaokê abarrotado de imitações. Estará nas rodas de samba do recôncavo com a falsa baiana, estará aqui. Estará em cada festa de Obaluaê, seu orixá. Estará no feminejo, com sua parceria com Marília Mendonça.

Gal Costa, não adianta nem nos abandonar, porque mistério sempre há de pintar por aí. E que Mãe Meninha do Gantois me dê licença para eu dizer: o consolo da gente está em Gal Cantando para o Gantois. Atotô!

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