Marcha para a Morte e o peso da guerra

Histórias de guerra sempre suscitam diversas discussões sobre moralidade e conflito armamentístico. Se o ocidente sempre tratou desses temas como algo complexo, buscando vidas de personagens no meio disso, o oriente acaba sendo mais rígido nessa questão. O Japão, com sua tradição bastante conservadora, trata a moralidade de outra forma. A guerra se transforma em uma relação de morte ou morte, pelo simples fato de não aceitar fugir desse fim. Toda essa questão acabou ficando mais complexa durante a Segunda Guerra Mundial, na qual toda a sociedade japonesa sofreu um baque com as bombas atômicas. Mais do que isso, sofreu um baque pela inaceitável derrota.

No meio disso tudo estava Shigeru Mizuki, soldado da tropa do país e futuro quadrinista. Como forma de rememorar sua fuga do conflito, ele realizou Marcha para a Morte!, uma trama sobre sobrevivência. Era uma maneira também de homenagear os colegas mortos durante o período e tentar rememorar com outros olhos esse sombrio fato. Nunca trazer com olhos de uma certa nostalgia, mas sim da complexidade. Sim de tentar entender, no âmago dessa circunstância, o que faz as pessoas sobreviverem. E o que faz a guerra destruir isso.

O roteiro acompanha, basicamente, 30 personagens. Pouco importa o seu desenvolvimento, apenas suas características durante a disputa. Enquanto alguns só querem lembrar do gosto da comida, outros estão preocupados em derrotar o inimigo escondido. Mizuki ainda é inteligente ao estabelecer essa relação de proximidade do leitor com cada um. Os traços acabam sendo um pouco grossos, quase cartunescos, a ponto de pensarmos esses como pessoas comuns (afinal das contas são). Ao entendermos seus comportamentos em uma pressão intensa, é possível ver a leveza de alguns a tentar tratar do tema, enquanto outros parecem a beira de surtar. Todavia, os inimigos na guerra não possuem rosto. Por isso, todos são sempre mostrados de forma mais rígida pela arte, sempre trazendo mais seriedade. É estabelecido um contraponto claro.

Essa expressão dos traços ainda transfere um vigor necessário a narrativa. É quase um alívio ver as sequências de Maruyama, por exemplo. Sua carga cômica, quase inocente, traz um respiro sempre necessário. O lado mais pesado dessa história está proposto a todo segundo, principalmente quando Mizuki dá enfoque as armas, os ataques repentinos e as granadas. Entretanto, esse refúgio acaba sendo transmitido para acalmar antes do grande clímax final. Esse, bem mais complicado e pesado dramaticamente, traz um lado bastante emotivo. A efemeridade da vida é posta a prova, sempre apontando o dedo ao público, em repensar sobre conflitos em si mesmo.

Tematicamente, o autor elucida quase uma filosofia onipresente. Não em um sentido de comentar sobre a problemática do conflito – isso acaba sendo deixado mais para as páginas finais e a frieza dos generais em ordenar a morte daqueles tentando se salvar, além de focar nos tapas dados pelos superiores. Mas sim em uma relação na qual não possui uma saída. Não é possível saber nem o que fazer para se distrair, quanto mais para entender a gênese dessas questões. Os personagens muitas vezes não discutem isso, porém é sempre possível sentir no ar uma melancolia, sempre trabalhada pela imensidão das regiões perante a cada um.

Em algumas páginas é possível estabelecer uma conexão até com O Relatório de Brodeck. O peso da guerra e a efemeridade da vida acabam sendo assuntos consoantes entre as duas obras. Essa banalidade do mal também se encontra presente aqui, todavia em uma carga de conectar esse mal a violência e a paixão humana pela morte. No momento em que continuar vivo parece algo inesperado, morrer é comum. Por isso diálogos na fuga dos soldados sobre deixar esse passado para trás e assumir o futuro acabam sendo mais presentes. Eles buscam uma retomada de chegar em um lugar na qual a morte é inesperada. Eles buscam escapar de todas as formas desse ambiente tóxico.

Marcha para a Morte! sabe muito bem como trazer seus temas. Realiza de forma perfeita toda a integração entre sua forma (os quadrinhos) e os eixos aonde quer chegar. É uma trama complexa, difícil e interessada em uma abordagem filosófica cada vez mais complexa sobre a guerra. Shigeru Mizuki poderia facilmente partir de uma linha mais pessoal em sua narrativa, mas prefere abranger um entendimento sobre as pessoas. Se a morte está cada vez mais em nossos tempos sendo tratada como efêmera, essa obra surge para lembrar sobre a importância da vida. A importância dos personagens humanos. A importância da memória e que ela nunca ser esquecida.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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