O Medo à Brasileira

Em uma primeira olhada para a história da literatura brasileira, é possível ver bastante como a principal característica gerou muito em torno do realismo e nacionalismo. Isso desde o romantismo, passando pelo modernismo até os dias atuais. Isso tudo ocorreu, especialmente, em nossa fase de maior renome internacional, mais especificamente entre o final do século XIX e início do século XX. Período esse, mais precisamente no ano de 1897, na qual houve a fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Olhando mais afundo, é possível ver alguns traços diferenciados. Um deles é a chamada segunda geração do romantismo, ocorrida entre os anos de 1853 a 1869. Nessa geração, chamada até pelo nome de “mal do século”, temas como a morte, pessimismo, dentre outras, fizeram-se presentes. As influências vinham bem fortes da Europa, com nomes como o poeta britânico George Gordon Byron e o autor alemão Johann Wolfgang von Goethe.

Mesmo com isso, nossa literatura ainda é, por muitos, creditada a não ter obras mais voltadas ao fantástico, como o terror, ficção-científica, fantasia, dentre outras. Esses gêneros foram transformados em um produto externo, ainda muito forte nas grandes livrarias e lojas pelo país.

Buscando repensar toda essa tradição literária, o jornalista Romeu Martins idealizou e organizou o livro Medo Imortal. Trata-se de uma coletânea de contos e publicações voltadas ao terror, feitas por membros originais da Academia Brasileira de Letras.

“No final de 2017, tive que levar minha mãe para ser atendida na emergência do hospital onde ela faz um tratamento contra câncer de mama. Enquanto ela precisou ficar isolada, eu só tinha comigo para ler uma antologia chamada Páginas de Sombra, organizada por Braulio Tavares, com contos de terror nacionais”, conta Romeu em entrevista ao Senta Aí. “Quando a mãe pôde voltar para casa, precisou de cuidados e eu cancelei compromissos para dar atenção. Com o excesso de tempo livre, comecei a pesquisar outros autores que tivessem escrito contos do gênero ali pela virada do século XIX para o XX. Foi quando descobri uma autora em específico: Júlia Lopes de Almeida”.

Martins, ao descobrir que Júlia havia escrito uma coletânea de terror em 1903 e havia até feito parte do início da ABL – mas acabou sendo barrada pela instituição seguir o modelo francês, na qual não havia mulheres – a ideia começou a surgir. Segundo ele diz, ele pensou: “e se eu organizasse um livro com contos e poesias de terror dos membros da ABL e incluísse alguns textos daquela autora injustiçada?”

O jornalista foi aos poucos aumentando o número de escritores clássicos, a pedido da editora na qual publicou, a Darkside Books, especializada no gênero fantástico. Com isso, ele começou a pesquisar cada vez mais sobre obras nacionais de autores considerados clássicos em nosso país. Dessa forma, nomes grandes como Machado de Assis, Álvares de Azevedo, João do Rio, dentre outros, apareceram.

“Alguns autores foram especialmente difícil de se garimpar. Posso citar Coelho Neto, que já chegou a ser considerado o maior escritor do país, logo após a morte de Machado de Assis, mas que caiu em desgraça após o surgimento do Modernismo, em 1922, por ter um estilo considerado muito ultrapassado por uma nova geração de intelectuais”, continua Martins. “Simplesmente não há uma única obra dele nas duas maiores bibliotecas de Florianópolis [ele é da cidade], para você ter uma ideia do ostracismo em que ele caiu. E mesmo virtualmente não é nada fácil encontrar alguma coisa da extensa obra que ele produziu”.

Apaixonado pela literatura de horror, ele se viu em um mundo completamente novo na história do país. A pesquisa, então, começou a ser cada vez mais aprofundada, a ponto de descobrir diversos pesquisadores e autores acadêmicos sobre a temática pelas universidades do país. Ele, inclusive, ainda destaca o blog Sobre o Medo mantido por alguns professores e alunos da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). No site é possível ver análises desde livros internacionais (como o caso de Frankenstein, de Mary Shelley) até nomes mais atuais do Brasil (como Lygia Fagundes Telles e Pedro Bandeira, por exemplo).

Segundo o mesmo, não houve um contato direito entre o blog e ele, devido ao sigilo na publicação da obra. Porém, foi fundamental como uma base para desenvolvimento e descobrimento dos autores.

Uma das coisas que Martins quis mostrar dentro do livro foi um contraponto a essa veia literária do país, citada anteriormente, muito baseada no realismo. Na introdução de Medo Imortal, ele fala: “A intenção é preencher o vazio deixado pela crítica acadêmica no Brasil, que, no século XX, optou por privilegiar um ideal literário que tivesse como missão construir uma identidade nacional”.

Mais recentemente algumas produções acadêmicas têm tentado debater e trazer mais da história do gênero fantástico na literatura do Brasil. O pesquisador Lainister de Oliveira Esteves com a sua tese “Literatura nas Sombras: Usos do Horror na Ficção Brasileira do Século XIX”, Célia Magalhães e sua tese “Os Monstros E A Questão Racial Na Narrativa Modernista Brasileira”, o artigo de Karla Menezes Lopes “Profano, Maldito e Marginal: O Conto Fantástico na Literatura Brasileira”, são alguns exemplos.

A ideia é repensar todo esse conceito “padronizado” pautado desde muito tempo. Repensar como também as terras tupiniquins produziram uma diversidade enorme, pouca conhecida, especialmente por um público mais jovem, amantes do gênero fantástico, mas apenas conhecendo autores de fora do país.

No mesmo ano do surgimento de obras como Drácula, de Bram Stoker, O Homem Invisível, de H.G. Wells, e até o início da carreira de H.P. Lovecraft, Martins defende que os autores nacional tiveram sim contato com essas obras estrangeiras. Eles, sendo assim, buscaram representar isso com histórias aqui no país. Contudo, essas suas produções, acabaram bastante esquecidas.

“Uma das coisas que procurei demonstrar no livro, nos textos de apoio que escrevi, foi apresentar quando surgiu essa tendência ao realismo em nossa literatura. Por ocasião da proclamação da República, pouco antes da fundação da ABL, houve uma intenção por parte da crítica de enfatizar um tipo de literatura mais nacionalista, que cortasse os elos com nosso passado colonial, destacando a realidade do país, em busca de uma certa brasilidade”, conta Romeu. “Desta forma, houve um esquecimento de autores que haviam se dedicado exclusivamente à literatura mais imaginosa e um apagamento de parte da obra de autores que passaram a ser reconhecidos apenas por suas obras realistas ou naturalistas.”

Questionado pelo Senta Aí qual seria a importância dessa coletânea, o jornalista foi bem direto ao demonstrar que o objetivo é atingir novas pessoas e disseminar o conhecimento dessa trajetória esquecida nacionalmente.

“Pela popularidade e o alcance da Darkside entre um público leitor de várias idades, mas principalmente os jovens, eu diria que é demonstrar claramente que literatura fantástica não é um produto necessariamente apenas de importação. Há um universo de qualidade nessa área que já foi e é produzido no Brasil para ser desbravado por novos leitores que já gostam do gênero”, completa.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

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