Os passados e presentes em Deslembro
Em sua primeira cena, Deslembro mostra Joana (Jeanne Boudier) jogando no vaso algumas fotos antigas. A figura, até então desconhecida pelo público, vai embora, assim como essa parte da vida da personagem. Essa correlação entre o passado e o presente faz parte totalmente do filme, ambientado em 1979. Nesse ano, a Lei da Anistia acontecia no Brasil, possibilitando a volta de diversos exilados políticos no período da ditadura militar. Joana acaba retornando a sua cidade natal após morar um tempo em Paris. Ela, sua mãe (Sara Antunes), e seus irmãos, terão de redescobrir e entender novamente como é viver no país. Não apenas no meio de um turbilhão político, mas também de amadurecimento da protagonista.
Dentro desse lado temático, o trabalho feito para idealizar essa sinergia tem diversos aspectos. Por um lado, é possível ver um lado meio nostálgico sobre um passado de memórias e boas lembranças, algo exemplificado por algumas de Joana e sua vó, Lucia (Eliane Giardini). Essa que olha para a neta e relembrar automaticamente do filho, especialmente por um lado meio fraterno. Essa nostalgia se expressa, do mesmo modo, por alguns pequenos flashbacks, buscando olhar o passado refletido no presente. Há, obviamente, lados positivos dessas lembranças (sequência final), porém o peso das feridas que nunca se curaram parece ainda mais fortificado.
Por outro lado, a encenação da cineasta Flávia Castro olha o tempo sempre de uma maneira meio esquisita. As conversas paralelas das pessoas mais velhas em volta, os espaços urbanos meio inalcançáveis e até uma simples autorização de viagem. Flávia não parece trazer a tona de frente de sua trama as questões políticas, entretanto coloca elas como fundamentais a vida de todos os personagens. Elas rondam seu cotidiano, seus erros e acertos e até simples ações. A obra gosta de olhar isso de maneira meio angustiante até, algo salientado pelo sumiço do pai e a falta de respostas. Nada parece ser bem digerido por aquela família. São rachaduras provocadas por um período da história do Brasil e marcadas até os dias atuais, visto que determinadas resoluções ainda não se alcançaram. Dentro desse ponto, pode-se rememorar até Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat, ao perceber a faísca de pequenos fatos em diversas vidas.
A diretora busca, então, um olhar total dessa situação sob a protagonista do longa. Ao encenar seus olhos para o horizonte, meio perdidos, como na cena da praia, ela delimita uma narrativa centrada nessa busca do futuro. Ao mesmo tempo, seus olhares também se voltam a buscar mais afeto materno, algo salientado por Castro ao mostrar o reflexo de Joana no espelho olhando para a mãe. Até uma exploração abstrata em certos momentos sabem trazer bem os sentimentos da personagem, querendo entender tudo isso. Ela busca respostas e mais respostas sobre seu passado, todavia sem nem saber o dia de amanhã. E, nisso, seu instinto protetor familiar pelos irmãos parece mais autêntico até do que a própria matriarca.
Há uma exploração cultural bem interessante e correlacionada dentro da narrativa. A música, principalmente, exerce um papel central nisso. Ocorre até uma certa brincadeira com possibilidades de surgimento da Tropicália, por exemplo, quando aparece uma música de rock para, em seguida, um samba. A encenação busca ambientar esses elementos de forma a perceber sua importância em um DNA nacional. Inclusive, a exaltação de cenas de filmes e novelas, coloca uma dependência de coisas ao redor para a existência. A arte, assim, é fortalecida como resistência em tempos difíceis. É a demonstração de como e porquê um país vive.
Apesar disso, o longa não sabe debater bem alguns posicionamentos do amadurecimento de Joana. A situação mais clara fica para sua relação com a classe na qual estuda e um relacionamento amoroso com o menino. São questões em que acabam ficando de maneira meio espalhafatosa na história, tendo sido apresentadas sempre espontaneamente, porém servindo mais a pequenos elementos. Não ocorre, dentro disso, um desenvolvimento desse amadurecimento pessoal. Suas questões de maior importância acabam decaindo estritamente sobre o passado e entender o atual momento da vida e de sua família. Isso acaba aparecendo desde o início, especialmente durante a sequência da chuva.
Deslembro reconhece e observa toda a importância política para a vida das pessoas. Ao buscar colocar uma personagem no auge de sua adolescência, Flávia Castro busca compreender essa força tão impactante do passado em nosso presente. Aqui, os dois são políticos, visto que acabam se conectando no embate da ditadura militar brasileira. Ambos fazem parte de quem a própria personagem principal é. Eles são um fio para o entendimento da vida, além de tentar seguir em frente aceitando todos os fatos. Apesar disso, esses fatos não são simples de aceitar e seguir em frente – ainda mais se tratando de uma pessoa mais nova. Entretanto, Joana precisa compreender. E lembrar para sempre. Ou talvez só deslembrar.