Resenha – O Avesso da Pele (Jefferson Tenório)

Pedro poderia ser um personagem como qualquer outros. Suas angústias, especialmente por não ter o pai presente, evocam diversos elementos sobre a maneira de nos colocarmos no mundo. Pedro, todavia, é o protagonista de O Avesso da Pele, novo livro do escritor carioca, mas radicado no Rio Grande do Sul, Jefferson Tenório. A maior diferença desse protagonista para qualquer outro personagem comum é o fato dele ser negro, e viver a dor da perda, além da tentativa de se encontrar, sob um outra perpesctiva. A morte dos pais é sempre algo doloroso, sofrido, ainda mais pelo fato de não ter escapatória. O maior problema é que o pai de Pedro tinha, já que foi morto pela polícia.

É um pouco nesse contexto que Tenório apresenta o andamento da sua narrativa. Em uma escrita que rememora José Saramago – especialmente na falta de parágrafos e em uma pontuação que em momentos soa confusa -, o autor coloca sua voz em uma obra que não é autobiográfica, porém ecoa um tempo contínuo. O personagem principal da trama vive na incerterza de entender seu papel no mundo. Para buscar isso, ele remonta as origens da família, especialmente nessa relação do pai e da mãe. A questão fica ainda mais pessoal com o pai, a qual ele tenta quase traçar uma biografia própria. E por que isso? O próprio Pedro responde:

“Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. Por isso não estou reconstituindo esta história para você nem para minha mãe, estou reconstituindo esta história para mim”

Fica bem claro como a busca desse homem é se entender no presente pelo passado. Mas, de qual forma é tão relevante rememorar essa vida do pai? Como também homem negro, é interessante para o protagonista se entender em perspectiva. Afinal, como é possível viver a experiência do tempo atual e presenciar o racismo constantemente, tentar se sobrepôr a um mundo que o coloca para baixo, sem tentar compartilhar da mesma vivência. E a figura paterna torna-se uma espécie de guia para o prosseguimento narrativo, sempre na perspectiva do filho. Ele atenta, assim, para erros e acertos, inclusive o conturbado relacionamento com a mãe. Essa “carta” em livro, é realmente direcionada para o pai, a qual a todo momento ele se refere como “você”.

O autor Jefferson Tenório. Foto: Eduardo Cabeda / Divulgação

Tenório abdica de elementos diretamente claros para construir a obra. Não há uma tentativa, por exemplo, sequencial de abordar essa vida. Ao mesmo tempo que também não há uma busca por literalmente discutir atitudes. A ideia de Pedro, em sua rememoração, é compreender de que forma tudo aquilo vivenciado durante tanto tempo, o construiu. Acima disso, é importante para ele perceber a si mesmo como um homem negro dentro da sociedade. A morte do pai e essa fuga da mãe na vida, já é uma correlação que implica em diversos preceitos particulares. Isso o torna parte de um sistema que apenas o massacra e deverá continuar pelo resto da vida.

É interessante como essa perspectiva até bastante triste, muda de um certo tom na última parte de O Avesso da Pele. Em “A Barca”, vemos a trama se desenrolar sob suas óticas: a do pai de Pedro e de um policial que sonha com homens negros invadindo sua casa. São os momentos finais da vida desse primeiro homem, premeditados já pelo andamento da escrita e os pensamentos do persoangem. Ele, que vive em uma constante monotonia, percebe a possibilidade de abordar seus alunos de outra maneira, para enxergar novos horizontes. Assim, consegue até colocar a obra de Dostoiévski, Crime e Castigo, para discussão. Os jovens, vindo de regiões pobres e envolvidos em uma violência constante, anseiam por entender como aquela produção artística retrata a realidade deles. Em paz por ter conseguido trazer o aprendizado que nunca acreditou ter feito, o pai de Pedro se sente verdadeiramente livre das amarras, buscando fazer apenas o que quer, e o que busca.

Essa perspectiva bastante fechada do personagem se confronta ao fato de outros alunos já o verem como referência. O mesmo até diz ser o “único professor negro da escola”. A importância dele foi pouco sentida em vida, mas é ecoada no tempo. Nesses trechos finais, o autor retoma um certo caminho otimista, em uma ideia da busca pela libertação na sociedade dominada pelo racismo. Não apenas estrutural, mas também atuante, esse se faz presente em cada ação da contemporaneidade – assim como era parte onipresente das atitudes na época das Grandes Navegações.

O Avesso da Pele é uma espécie de mensagem do presente para o futuro. Dos homens e mulheres negros que passaram e irão deixar marcas, apesar de terem sofrido bastante por isso. Ao mesmo tempo que também é a marca dos pais que, mesmo que errem, também estarão presentes de todo jeito na vida dos filhos. É como se Jefferson Tenório olhasse cada pessoa como atemporal, de uma linhagem eterna. Talvez para nos compreendermos no tempo, nem seja sempre necessário olhar esse passado, em busca dos ecos do futuro. No entanto, em certos instantes, se observarmos bem tudo que já passamos, o que vem pela frente pode não ser tão ruim assim.

Comentários

Cláudio Gabriel

É apaixonado por cinema, séries, música, quadrinhos e qualquer elemento da cultura pop que o faça feliz. Seu maior sonho é ver o Senta Aí sendo reconhecido... e acha que isso está mais próximo do que se espera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *