Senhor Milagre e o conflito entre criação e criadior
“Ser ou não ser, eis a questão”. Uma das frases mais famosas da humanidade proferida por Hamlet, personagem-título da peça homônima de Shakespeare, traduz um sentimento bem forte sobre existência. Em primeira vista isso pode soar um tanto quanto esquisito, porém se aprofundando e trazendo alguns pensamentos sobre os filósofos gregos, percebemos que a ideia do ser se traduz de forma sempre esquisita aos olhos humanos. Afinal, uma de nossas maiores indagações é entender o porquê de realmente estarmos aqui e para que fazemos tudo que fazemos. Dentro desse preceito, a ideia de entender sobre essa definição, nos faz instigar a um lado mais místico, fora de um plano concreto. Surgem, assim, religiões, dogmas, crenças, mitologias e muito mais. Porém, se tivéssemos essa resposta, qual seria o pano final de tudo? O que realmente iríamos fazer com ela?
Senhor Milagre, recém-lançamento da Editora Panini, entra nesses preceitos de uma forma já bastante pesada. O protagonista é Scott Free (Senhor Milagre), o maior e mais famoso escapista do mundo. Além disso, ele secretamente vive uma vida como herói intergalático, no passo de seu envolvimento com uma guerra entre Apokolips (lar de Darkseid) e sua terra, Nova Gênese (lar dos Novos Deuses). Ainda que esteja envolvido nesse cenário, Scott leva uma vida de um fracasso com si mesmo, tentando realizar seu maior show e tirar a vida. Entretanto, ele não consegue. E deverá aceitar a realidade e lidar com os dilemas, amargurando uma melancolia sobre o universo precedente desde sempre.
É interessante como o roteirista Tom King trabalha todo esse conceito dentro de uma narrativa de heróis e ficção-científica. O início – com Scott logo após a tentativa fracassada – já demonstra uma certa amargura presente aqui. Mais do que isso, King gosta de ir fundo nessa concepção filosófica de mundo, gerando o constante do personagem enchido durante toda a página ensaguentado e uma narração de frases escritas por Jack Kirby, criador de todos os Novos Deuses, em histórias antigas do mesmo herói. Há uma certa ironia logo nesse estopim, dentro da elaboração criador/obra. Aliás, a repetição constante dessas frases de Kirby já retratam um passado não apenas aos personagens, mas também a esse universo. É uma clara reverência ao mundo, com o objetivo de traçar uma novidade, de gerar uma nova criatura.
Se toda relação dramática é presente dentro de toda essa personalidade de Milagre, há ainda uma conspiração quase alarmante dentro da trama mais cósmica. A repetição constante de “Darkseid é”, além da divisão constante em 9 quadros proposta pelos desenhos de Mitch Gerads, na qual até brinca bastante com essa definição no último capítulo, gera uma certa urgência quase onipresente aos acontecimentos. Onipresença essa que também fundamenta o papel de Deus aqui, dentro dessa imagem do ser e a conexão semântica com o “é” do vilão (fato esse preponderante em uma das sequências finais), além de uma certa observação desses acontecimentos por parte do público. Não somos definidores do desenrolar da história, porém acompanhamos essa novo trabalho de um Deus próprio, no caso o criador da HQ. Todas essas pequenas correlações se tornam não apenas metalinguísticas, do mesmo modo que diretas em referências nos diálogos.
Dentro desse meio, a relação entre Scott com sua esposa, a Senhora Barda. Ela, mais poderosa até que o marido, parece ser o único instante de paz proferido em sua existência, algo relatado de forma até bem singela no capítulo 5. Esse capítulo mesmo na qual o personagem principal, no auge de uma serenidade e tranquilidade, relata sobre Descartes e a frase “Penso, logo existo”. Ali, novamente, toda a figura não direta, não histórica, mas originadora de Deus está presente, com a conclusão da existência ser possível apenas através de um criador – conclusão essa feita pelo filósofo. Dessa forma, Senhor Milagre também só poderia existir como tal por uma figura de criador. Essa, homenageada logo em um dos primeiros quadros desse mesmo capítulo, ao protagonista colocar sua mãe perante ao mesmo membro de Kirby, em uma calçada da fama.
Com o desenrolar dos fatos, se torna cada vez mais intrigante a forma do inchaço na narrativa proposto pelo autor. As diversas tramas paralelas se juntam a cada nova página por uma simples definição de um entendimento de identidade, algo proposto de maneira mais clara no julgamento, e o verdadeiro método a se resolver isso tudo. Se ele foi criado para lutar e batalhar contra o que julgar mal e errado, deve fazer isso ao encontrar-se em uma dessas situações. Por isso, a relação direta a uma luta de videogame no ato derradeiro, no quesito de não possuirmos controle perante as ações de ataque dos personagens, algo intrínseco a arte dos games.
Tom King parece fazer quase uma carta aberta a filosofia e a ideia de criação em Senhor Milagre. O desenvolvimento de seu roteiro e da arte de Mitch Gerads em torno de uma relação totalmente passiva das situações, torna a obra totalmente colada de sua forma e conteúdo. É um trabalho de amor ao questionamento, além de uma clara homenagem ao criador, Deus de cada um de seus trabalhos, algo podendo ser relacionado a Jack Kirby ou a uma condição divina. O fato é que essa história precisava estar na indústria de quadrinhos e não ao contrário. Assim como criatura precisa prever uma existência do criador.