Sharp Objects e as mulheres sombrias de Gillian Flynn

Estou falando de mulheres violentas e malignas. Assustadoras. Não me diga que não conhece algumas. O ponto é que as mulheres passaram tanto tempo empoderando a si mesmas que não sobrou espaço para reconhecer nosso lado sombrio. Lados sombrios são importantes e deveriam ser cultivados como desagradáveis orquídeas negras.

Gillian Flynn se tornou um dos nomes mais falados da literatura moderna com seu Garota Exemplar, um suspense que vendeu milhões de cópias e serviu de inspiração para uma adaptação homônima que arrasou quarteirões de maneira similar e ainda deu à Rosamund Pike aclamação universal e uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Não demorou para que as outras obras de Flynn também se tornassem best-sellers: histórias de investigação envolvendo mulheres de caráter suspeito e passados misteriosos e provavelmente alguma reviravolta de fazer o leitor arrepiar os cabelos. Como Hollywood é uma instituição que não dorme, adaptações “irmãs” logo surgiram, como “Lugares Escuros”, com Charlize Theron.

O próximo da lista resolveu fazer diferente e foi parar nas telinhas, mas não com menos pompa. Uma produção da HBO, a adaptação de Objetos Cortantes, o primeiro romance da autora, conta com nomes de peso na frente e atrás das câmeras. Contamos com a participação da própria Flynn no roteiro e na produção, temos Jean-Marc Vallée, de Big Little Lies, na direção. Além disso, um elenco de peso, com nomes como Patricia Clarkson, Eliza Scanlen, Chris Messina e Elizabeth Perkins, liderados por Amy Adams no papel da protagonista.

A história segue a repórter Camille Preaker, que retorna para sua cidade natal, Wind Gap, Missouri, para cobrir o assassinato de duas meninas pré-adolescentes. No entanto, voltar para casa se mostra uma tarefa cada vez mais difícil, quando ela é obrigada a confrontar sua problemática família, a matriarca Adora Crellin e a irmã Amma, assim como seus demônios internos, cada vez mais agitados com o passado enigmático que o retorno ao lar traz à superfície.

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Três elementos funcionam de maneira soberba em Sharp Objects: a direção, a atuação e a edição. A combinação destes três fatores é essencial para a construção do clima e da tensão que a história pede. No material de origem, muita coisa nos é contada pelo ponto de vista da protagonista Camille, como o passado da cidade, os eventos traumáticos de sua infância e suas condições psicológicas que a levam à automultilação. O diretor traz isso para o audiovisual através de pequenos flashbacks, alinhados de maneira (não há outra palavra que defina) perfeita com o presente. É louvável o que o time de editores faz aqui. A maneira com que as imagens são entregues ao espectador, misturando passado e presente, de maneira sutil ainda que impactante, são responsáveis por situá-lo entre os sentimentos da protagonista. A edição ajuda a contar uma história sem usar de palavras, mas apenas de algumas imagens necessárias.

Essa identificação e empatia, todavia, não seriam tão certeiras sem a direção impecável de Jean-Marc Vallée. A lente do francês é seca e pessimista, transmitindo visualmente a cada esquina deserta e bar neon o perigo escondido nas ruas de Wind Gap. Cada enquadramento tem uma história e um segredo próprio, um passado, um silêncio que grita fortemente para ser quebrado.

Logicamente, tudo isso seria um desperdício se não ancorado por uma boa performance. E Amy Adams entrega muito mais do que isso. Conhecida por sua versatilidade, aqui Adams se entrega totalmente à Camille Preaker: desde o excelente trabalho de maquiagem corporal até as cenas mais intensas, a atriz não deixa a desejar em nenhum momento. Preaker é uma personagem de poucas palavras e muitos sentimentos, e novamente trabalhando com o olhar, Amy entrega todas elas. O medo, o desespero, a vergonha, a frustração. Temos uma personagem com diversos fantasmas e batalhas dentro de si e a atuação de Amy faz com que a audiência sinta essas lutas na pele. Destaque para a cena em que Camille finalmente descobre o verdadeiro responsável pelos acontecimentos na cidadezinha. Não dura mais que alguns segundos, mas é o bastante para partir seu coração.

Apesar da grandeza da protagonista, é impossível não tecer elogios ao resto do elenco. Perkins aparece pouco como a conterrânea socialite Jackie O’Neill, mas deixa sua marca na tela com olhares nebulosos e frases de duplo sentido. A estreante Eliza Scanlen não possui muitos trabalhos no currículo, mas ao trabalhar entre nomes gigantes e experientes, não deixa a peteca cair. A loura brinca entre a doçura infantil e a rebeldia adolescente de maneira tênue, equilibrando dois lados em uma personagem complexa e ainda adicionando um terceiro. Patricia Clarkson é maldade pura na pele da “mommy dearest” Adora, com seus olhares gélidos e maternidade obsessiva. Apesar de ser uma excelente atuação, não é nada que surpreenda, visto os trabalhos anteriores da atriz. Sophia Lillis Lulu Wilson, interpretando figuras do passado, não devem ter mais de sete falas, mas possuem grande presença em cena. São extremamente necessárias ao enredo e à construção de personagem e mitologia.

Um dos principais temas da história é a maldade que cada um carrega dentro do si. Tanto no livro quanto no seriado, temos mulheres fofoqueiras, invejosas, carentes, obsessivas, frias e acima de tudo, malignas. Tema presente em sua obra, as personagens de Gillian Flynn não possuem medo nenhum de serem vilãs, algo constantemente defendido pela autora. Em suas obras, não há espaços para os típicos papéis femininos. Não há “a mãe”, “a prostituta”, “a secretária”. Há uma incrível diversidade de índoles, vivências e problemas, que refletem a sombria América que poucos querem mostrar. Camille, Adora e Amma são personagens sombrias, incríveis e complexas e é um deleite acompanhá-las em tela.

Dito isso, é preciso dizer que o ritmo apresentado não acompanha o nível dos aspectos supracitados. Apesar da excelente ambientação e construção de clima, há uma investigação que anda em círculos o tempo todo, trazendo brigas e personagens pequenos que acabam não levando a nenhum lugar relevante dentro da trama ou para o desenvolvimento dos personagens principais. Há quem diga que uma atenção maior e um ritmo menos lento sacrificaria o desenvolvimento de personagem que a série fez tão bem, mas isso não é verdade. Havia espaço o bastante para ambos e um desequilíbrio desnecessário entre esses dois lados podou a minissérie de alcançar um patamar ainda maior.

Sharp Objects é, portanto, um dos produtos mais diferentes da televisão atual. É imersivo, reflexivo e perturbador, e embora não seja ausente de problemas, é certamente um dos melhores produtos audiovisuais do ano.

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