Crítica – Earwig

“Um pesadelo gentil”, é assim que a diretora de Earwig, Lucile Hadžihalilović, descreve a sua obra. Particularmente, não entendo de onde o adjetivo “gentil” viria, mas a parte do “pesadelo” faz todo o sentido, e é algo que a autora parece já estar acostumada a lidar, com seu filme prévio, Evolution, que também parecia transcorrer como um pesadelo, com eventos bizarros acontecendo sem grandes explicações.

No centro de Earwig está uma criança chamada Mia (Romane Hemelaers), que seria comum se não fosse pelo aparelho que está em sua boca, constantemente coletando saliva. O propósito desse aparato logo é revelado, já que é a partir dele que Mia pode ter uma espécie de dentição, formada a partir da sua própria saliva congelada, ou seja: seus dentes são blocos de gelo. Esse estranho processo é acompanhado e realizado por Albert (Paul Hilton), o outro único humano nessa casa isolada em algum lugar da Europa. A única interação dos dois é essa, quando Albert coleta a saliva de Mia para congelá-la e colocar a dentadura na criança. Alguém está interessado no status de Mia, com Albert recebendo frequentes ligações sobre isso, até o dia que essa voz no telefone informa que a menina deverá ser levada para outro lugar.

Apesar do aspecto muito evidente de body horror no filme, a diretora não explora isso de modo muito profundo. Todo o processo relacionado ao estranho aparato possui uma postura muito burocrática, como se Albert tivesse realizado aquilo diversas vezes, com todas essas cenas sendo encenadas de maneira muito similar, é o fantástico tornado rotineiro.

Aliás, é curioso como a peculiaridade de Mia de um modo geral não é o foco do filme. O incômodo de tal condição é mais evidenciado pelo som do que pelas imagens. Albert tem o costume de escutar a criança durante a noite, pela porta do quarto, e assim, escutamos o bater de seus “dentes”.

Assim, o protagonista de Earwig é, na verdade, Albert, que parece não lidar muito bem com a responsabilidade, e termina suas noites em um bar, bebendo copiosamente. É um mundo obtuso, sabemos muito pouco sobre Albert e sua tarefa, logo, é propício que a fotografia do longa seja tão escura, como se tivéssemos que apertar os olhos para captar um fragmento de um mundo maior, mas que talvez não esteja aberto para nossa compreensão.

Hadžihalilović construiu um longa intensamente atmosférico, com um ritmo e ambientação muito próprios, e possivelmente não tenha nada mais a oferecer senão isso, uma frequência muito específica, já que a narrativa só se torna mais e mais obtusa, com a introdução até mesmo de personagens que parecem ocupar um espaço separado de Albert e Mia.

Assim, Earwig é realmente um trabalho singular, possuindo uma iconografia muito própria, mas parece se perder em sua própria “vibe”, por assim dizer, apoiando demasiadamente nessa atmosfera meio onírica para o seu desenvolvimento. Funciona na primeira meia hora, mas acaba se tornando um tanto tedioso conforme progride, já que mantém o que tem mais de interessante longe do seu foco, que é Mia e tudo aquilo que lhe diz respeito. 

Esse texto faz parte da cobertura do Festival Internacional de Cinema de Toronto 2021

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