Korra, a filha bastarda da Nickelodeon
Avatar: A Lenda de Korra (2012-2015) é uma continuação da série Avatar, sendo esta a irmã mais nova da tão aclamada Lenda de Aang (2005-2008), joia produzida pelos estúdios da Nickelodeon na década passada e xodó pessoal de seus criadores, Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko. O show é conhecido por ser muito mais maduro enquanto narrativa em comparação a seu predecessor, levando temas como sexualidade, depressão e política para as telas da Nickelodeon (conhecida como canal de conteúdo infanto-juvenil), além de ter manchado as linhas entre “bem e mau”, dando mais complexidade a tópicos morais. ESTE REVIEW CONTÉM SPOILERS. SE VOCÊ AINDA NÃO ASSISTIU A ESSA OBRA-PRIMA, FAÇA O FAVOR E RETORNE A ESTE POST DEPOIS!
A (dificuldade de) recepção
Os criadores (Bryke, como são chamados pelos fãs) foram intimidados logo no início com vários e-mails pedindo não um show sobre outro avatar, mas uma continuação direta de Aang. A preocupação sumiu depois do duo ter apresentado o trailer de Korra na San Diego Comic Con em 2012, onde foi recebido com muita euforia. Vendo a reação dos fãs, a Nickelodeon teve certeza de que o show seria uma ideia rentável. O que eles não esperavam era a falta de aceitação do público para as lentes mais maduras que Korra adota em sua narrativa. Além disso, nossa heroína já estava fadada a ser menos aceita que Aang pelo simples fato de ser mulher.
Livro Um: Ar
Começamos com uma grande novidade. Existe agora uma megalópole no mundo de Avatar, e ela conta com uma forte influência visual steampunk e os novos dobradores de ferro! Os dobradores de ferro de Republic City são a força policial da cidade, e é de tirar o fôlego quando os vemos em ação pela primeira vez indo atrás de Korra. A Avatar é escoltada para o gabinete pessoal de Lin Beifong, ninguém mais ninguém menos que a filha de Toph Beifong (melhor dobradora de terra de todos os tempos!).
O propósito de Korra como personagem era o de ser uma Avatar com uma personalidade inversa a de Aang, e isso é explícito desde a primeira vez em que vemos as suas proezas marciais. No primeiro contato com a protagonista, vemos uma mulher com uma personalidade forte e muita vontade própria, e isso é, na minha opinião, o ponto mais cativante de toda a série com o público. Ela vai pra cidade e não se importa em ser discreta, onde Aang teria sido mais cauteloso, por exemplo.
Após isso, nos é introduzido Amon, líder dos equalists (organização clandestina de não-dobradores) e antagonista do livro um. O personagem de Amon é legal, mas não é nada excepcional, pois o grande desenvolvimento da trama estava focado em nos fazer entender quem era a nova Avatar (pelo menos a estética dele é massa).
A Avatar da água é igual a água em si. Uma personalidade apaixonada e serena, como a água que corre um rio. Em compensação, quando Korra é tomada pela fúria, ela apresenta a imparável força de uma correnteza. Korra se excede nas capacidades físicas, por isso é tão boa em dobrar água, terra e fogo. A dobra desses elementos é compatível com a luta, e a nossa Avatar nunca teve dificuldade em lutar com ninguém. Já com o ar, Korra tinha enorme dificuldade, pois o ar é um elemento oposto a sua personalidade. O ar é suave e calmo, sua dobra é mais algo próximo de uma dança do que de um estilo de luta. O primeiro livro inteiro é sobre sua adaptação ao elemento oposto.
Livro Dois: Espíritos
Aqui a coisa desanda um pouco em termos de qualidade. Na primeira temporada, temos momentos de drama adolescente entre Mako, Bolin e Korra. Somente na segunda temporada temos a protagonista sendo enganada pelo que pode vir a ser o pior antagonista de toda série Avatar. Unalaq é um vilão caricato, sem sal e sem personalidade. Ver a nossa protagonista sendo enganada por um TAPADO não é bom (ok, ele é “inteligente”, mas nunca convenceu), e estraga muito da experiência da segunda temporada num contexto geral. (isso não é culpa de Bryke, gostamos de acreditar). Por outro lado, a Nickelodeon encontrava um problema enorme.
Logo no quinto episódio a série teve a menor audiência desde seu começo, pouco mais de um milhão de telespectadores. Começava aí uma mudança crucial na série, que não muito depois, seria exibida apenas no site da Nickelodeon. A segunda temporada é a temporada dos erros.
O Studio Mir, de Seoul, parou de produzir a série, dando lugar ao japonês Studio Pierrot. Essa mudança não agradou, e os produtores voltaram atrás depois e confirmaram que o Studio Mir retomaria o livro 2 na metade, e ficaria até o fim do livro 4.
E a temporada 2 foi isso: Um terreno em que os produtores estavam passando por dificuldades técnicas. Tiveram que errar e aprender com erros. Na época não sabíamos, mas estava para vir uma nova era de Korra. Uma era de ouro.
O tema principal do arco é a forma com a qual Korra aprende a reforçar seus laços espirituais com o mundo, um mundo cheio de espíritos irritados ameaçando a tribo da água. A segunda temporada é a mais fraca de todo conteúdo Avatar já produzido, tendo um episódio spin-off do Avatar Wan (primeiro Avatar, entenderam?) como o melhor episódio da temporada, e um final bizarro, com direito a Jinorah (uma criança) servindo de deus ex machina para magicamente acabar com todos os problemas de Korra.
Uma das únicas coisas que me chamaram atenção na temporada, foi como Vaatu (manifestação espiritual do mal) arranca de Korra para sempre a habilidade de se conectar espiritualmente com os Avatares passados, que por sua vez, foram um conforto constante na vida de Aang. Isso seria intimamente explorado na quarta temporada, onde Korra passa por momentos de depressão.
Livro Três: Mudança
OK. Aqui começamos a ver aos poucos a série sendo gentilmente colocada de volta nos trilhos de ouro que Aang cultivou por tanto tempo.
É o renascimento da nação do ar! Devido a acontecimentos do fim do livro 2, a dobra de ar começou a surgir “do nada” em pessoas ao redor do mundo. O objetivo de Korra e Tenzin (filho de Aang que conta com a voz de apenas J.K Simmons) é o de reunir estas pessoas e reconstruir a nação do ar. Tenzin é um dos personagens mais interessantes em Korra, pois possui a cabeça preocupada e ansiosa igual a do pai, carregando nas costas o legado de um avatar e sendo até então o único mestre de dobra de ar no mundo. É um dos personagens mais desenvolvidos aqui, junto de Korra, a família Beifong e a Red Lotus.
A Red Lotus é um ex-grupo de terroristas com tendências anarquistas, sendo encabeçada por 4 guerreiros letais (e ótimos vilões!). São eles, da esquerda pra direita:
P’li, uma intimidadora dobradora de fogo. Possui a rara dobra de combustão. É namorada de Zaheer.
Ghazan, um dobrador de terra. Primeiro gosto real que temos de um dobrador de lava e seu poder.
Ming’hua, a mais assustadora do grupo. Uma dobradora de água que não possui braços.
E finalmente temos Zaheer, o antagonista principal da temporada. Zaheer é inteligente, um estrategista nato, líder supremo da Red Lotus. A motivação de Zaheer; fazer com que Korra seja a última Avatar, vem dos interesses políticos do personagem, e no fim da temporada, ele chega consideravelmente perto de obter sucesso em seu plano, envenenando Korra com um veneno metálico que por um “milagre” não provocou sua morte.
Zaheer chama atenção desde o começo da temporada, na cena de seu escape da prisão. Mas é apenas quando ele usa sua recém-adquirida dobra de ar para ASFIXIAR a rainha da nação da terra que percebemos o quão sério ele é sobre sua ideologia. A partir daí, o império da terra sucumbiu a um violento levante popular, que seria onde a quarta temporada se desdobraria depois.
As companhias de Zaheer adicionam uma personalidade ainda maior ao perfil da Red Lotus. P’li é assustadora, vista até como uma espécie de aberração por grande parte das pessoas, mas é fria na hora de fazer seus julgamentos, além de rápida e precisa. É só depois de sua morte (condição terrena de Zaheer) que este redescobre a arte de voo livre, considerada extinta entre os dobradores de ar. Ghazan é o que menos tem personalidade dos quatro, mas ele, novamente, DOBRA LAVA! E finalmente, Ming’hua, a outra aberração do grupo. Ming’hua usa sua dobra de água para criar tentáculos no lugar dos braços e se movimentar por aí, numa espécie de parkour aracnídeo aquático que é qualquer coisa, menos humano. Suas expressões e voz (na dublagem original em inglês) só ajudam a moça a ser a vilã mais assustadora de TLOK.
O grupo, ao longo da temporada, bola e executa um plano anti-avatar, baseando-se em que:
Se um Avatar morrer durante o estado Avatar, ele não reincarna numa próxima vida. Tendo ciência disso, a Red Lotus envenena Korra com um veneno que, ao deixa-la tão perto da morte, ativa o “estado Avatar”, o último recurso do portador. Se não há reincarnação, o ciclo do Avatar chega a um fim.
O arco final é cheio de tensão, dobradores de ar e lutas épicas, com Korra mostrando seu poder bruto como Avatar estando tão perto da morte. Ah, e Jinorah salva o mundo de novo. Que criança foda.
Livro Quatro: Equilíbrio
Três anos depois dos acontecimentos finais do livro 3, Korra se encontra quebrada, com medo e espiritualmente desconectada. Zaheer ainda a aterroriza em sua mente, junto com seus maiores inimigos até então: Amon, Unalaq, Vatu e o resto da Red Lotus. Esse é o momento mais emocional da série inteira. Korra salvou o mundo apenas para ficar desaparecida por meses, vagando como indigente e lutando em arenas clandestinas para sobreviver. Mas a Avatar não conseguia mais lutar, não depois do trauma de Zaheer.
Enquanto isso, Kuvira já havia “reunido” todo o império da terra depois da rebelião, tendo como último alvo a capital Ba Sing Se. Depois da conquista, Kuvira inicia uma empreitada contra Zao Fu, a cidade do metal, onde foi criada sob a asa de Suyin Beifong, a outra filha de Toph. Durante estes acontecimentos, Korra se depara com um exército inteiro sendo comandado por uma cruel ditadora, mas não vê como ela poderia ajudar desta vez. Já havia aceitado a derrota.
Korra, diferente de suas vidas passadas, não tinha ninguém para guia-la. Estava sozinha. Começa aí uma aproximação da mente deprimida da Avatar, pensando sobre como o legado histórico dos Avatares quase morreu em suas mãos. Antes disso, tivemos algo parecido dentro da psique extremamente ansiosa de Aang, mas mesmo assim, o retrato de Aang não era o de uma pessoa emocionalmente quebrada, apenas confusa.
O interessante aqui é como é retratado o processo de recuperação de Korra. Ela se mete em lutas das quais não consegue vencer, e desesperada, visita Zaheer em sua prisão, no que vem a ser uma das cenas mais importantes em seu desenvolvimento. Amedrontada até os ossos, Korra confronta Zaheer, e este a explica sobre como ela possui um potencial ilimitado, e que a única pessoa que define esse limite é a própria Korra. Pouco depois, nos é revelado que o veneno da Red Lotus ainda existe em seu corpo, e Korra então embarca em um período sabático n’O Pantâno Nebuloso, apenas para encontrar uma velha figura, uma moça baixinha e cega que a mentora e a treina. O treinamento persiste até que Korra consegue retirar o resto do veneno de dentro de seu corpo, estando assim, finalmente pronta para enfrentar a grande conquistadora Kuvira.
Kuvira é uma vilã clássica, uma que faz questão de cultuar a sua imagem e fazer o mundo acreditar que ela faz o que faz por uma boa causa. Ao longo do livro, mais e mais pessoas vão lentamente descobrindo as verdadeiras motivações de Kuvira, mas mesmo assim, são incapazes de parar a grande conquistadora. Kuvira é rápida e letal, assim como Azula foi em A Lenda de Aang. É a antagonista que a série precisava para construir toda a tensão que sentimos no arco final.
O finale de Korra é megalomaníaco, assim como os planos de Kuvira, que marcha sobre Republic City com um ROBÔ GIGANTE. Praticamente todos os personagens relevantes da série lutam aqui, e se não lutam, servem a algum outro propósito. Todos tem de trabalhar juntos para ter chance contra Kuvira e seu exército. A batalha final é de proporções épicas. A tensão está presente em todo lugar, assim como muita ação e lutas que não nos dão a chance de piscar os olhos.
O quarto e último livro é digno de um grand finale a altura da série Avatar. Apesar de contar com alívios cômicos bem irritantes, como Wu, príncipe do reino da terra, a narrativa não falha em nos empolgar.
A experiência de Korra, num geral, é menos rica do que a de Aang, mas ainda é uma produção de alto nível feita por pessoas apaixonadas por sua história. Muitos acreditam que A Lenda de Korra foi um marco na televisão (e até fora dela) e não é por menos. É uma série com falhas, mas extremamente séria quando se trata de tópicos mais pesados e menos convencionais em animações. Qualquer fã de Avatar encontrará em Korra uma experiência inédita e ao mesmo tempo nostálgica e enriquecedora, principalmente nos livros 3 e 4.